segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Acho que cabe uma jubarte


Medidas não passam de pontos de referência mentais. Parâmetros comparativos e relativos, que mudam conforme o tempo e o espaço. Quantos calendários já existiram na história? Quantos valores já definiram o alto e o baixo, o rápido e o lento, o rico e o pobre? Quantos números de sapato você calça ao redor do mundo, nos mais diferentes países? E um dos efeitos mais interessantes da abstração e da relatividade dos sistemas de medição: quantas vezes retornamos a um lugar em que vivemos na infância e nos impressionamos com o fato de ele hoje parecer bem menor do que lembrávamos? A realidade é a mesma. Então, o que mudou? A perspectiva do corpo? Provavelmente não. Pois mesmo se agacharmos e ficarmos na exata altura que tínhamos quando crianças, o lugar continua diferente. E pequeno. O que mudou a medida da sala, dos quartos, dos móveis, das coisas, foi o tempo, culpado por transformar e ampliar as nossas referências mentais dia após dia. Antes, ali era o nosso mundo. Hoje é uma simples casa, grande no coração, pequena no mundo.

Há algum tempo, quando soube que seria pai, decidi comprar um veículo um pouco maior, para poder carregar carrinho, bolsa, brinquedos, babá e toda a bagagem que nasce junto com uma criança. Acostumado a dirigir uma lata de sardinhas, acabei adquirindo um carro médio para os padrões brasileiros, porém um transatlântico para as minhas referências mentais. Meu afilhado, que àquela época tinha pouco mais de cinco anos, e estava se especializando de forma sistemática em espécies gigantes do mundo animal, manteve o tema aquático e fez um diagnóstico bastante pertinente do espaço no banco de trás. “Acho que cabe uma jubarte.”

Apesar de não existir uma medida confiável para o tamanho de um texto – já que poucas palavras muitas vezes se tornam poemas grandiosos e que alguns livros imensos (os bons) são devorados sem que se perceba o passar do tempo – admito que esta crônica, se continuar divagando sobre as inúmeras métricas existentes no mundo exterior e interior, acabará ficando extensa demais, mesmo para o leitor mais persistente. Do jeito que as coisas vão, chegará o ano que vem, mas não terei chegado ao ponto central da discussão. Por isso, sem mais delongas, coloco na mesa o verdadeiro motivo da minha reflexão: qual a medida exata de um ano?

Se fossem apenas os 365 dias, 5 horas, 49 minutos e 12 segundos defendidos pela ciência atual, por que alguns anos parecem rápidos e outros morosos? Se todos os anos duram o mesmo tempo, por que alguns parecem grandes e outros pequenos? Por que alguns anos, mesmo depois de terminados, se estendem para toda a vida? E por que outros passam completamente despercebidos? Porque a medida de um ano não é feita pelos meses, nem pelos dias, nem pelas horas. É feita por espaços na nossa memória. De quantos espaços aquele ano conseguiu preencher.

Este foi o ano em que vi meu filho passar por uma cirurgia mais complicada do que o previsto e que experimentei o que é deixar o meu bem mais valioso nas mãos de outra pessoa. Foi o ano em que, numa internação hospitalar seguinte, o vi sair da sala de cirurgia com um acesso venoso instalado no meio pescoço, sem autorização prévia, e que senti a raiva de ter confiado na pessoa errada: uma lição para a vida. Foi o ano em que conheci cinco países em uma única e inesquecível viagem ao lado da minha mãe. Foi o ano em que mudei para o meu primeiro apartamento próprio, planejado do jeito que minha mulher e eu queríamos, uma realização que me trouxe – traz diariamente – muito mais alegria do que jamais imaginei.

Porém, o acontecimento do ano que provavelmente terá o maior impacto na minha vida chegou de mansinho, quase no fechar do ano, sem alarde, e, aos olhos menos atentos, é difícil de perceber. A verdade é que o Antonio começou a engatinhar. Do jeito dele, é claro. Tecnicamente, diz-se “engatinhar em bloco”. Isto significa que ele fica de quatro, avança com um braço, depois avança com o outro e, em seguida, puxa os dois joelhos para frente ao mesmo tempo, em bloco, como se fosse um sapo. Acontece apenas uma ou duas vezes ao dia, por distâncias muito, muito curtas, e por motivos muito, muito específicos. Nesta semana, o vimos engatinhar algumas vezes apenas para pegar o brinquedo preferido e para alcançar – e tentar lamber – as rodas imundas de um dos seus carrinhos de passeio. Chega a dar uma pena de tirar o carrinho de perto dele após tanto esforço. E fica um medo de desestimulá-lo a continuar tentando se mover. Mas enquanto ele não descobre outro atrativo que valha a pena, vamos deixando o carrinho de isca. Um dia ele morde aquela roda. Secretamente, parte de mim deseja ver isto acontecer.

Os dois últimos anos certamente estarão para sempre entre os maiores da minha vida. Fizeram experiências anteriores parecerem um pouco menores, como as casas em que vivemos na infância. Mudaram drasticamente as minhas referências mentais para o que é importante. Alteraram as minhas medidas para o que é ter sucesso na vida. E ao pensar sobre todas as conquistas realizadas nestes últimos dois anos, como acordar na casa nova, ou ver o Antonio se arrastar de um lado para o outro, meu peito se enche de orgulho e felicidade. Fica imenso de satisfação. Grande mesmo. Se medir por dentro, acho que cabe uma jubarte.

Feliz 2013.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

A árvore


Foi o menos tradicional dos presentes de Natal. Não se compra em loja, não se encontra em shopping, não se concorre a prêmios com a nota fiscal. Discreto por natureza, não veio com um grande laçarote, como viria um carro zero quilômetro, um filhote de cachorro, ou outro desses presentes que gostam de causar impacto. Não vale fortuna. Não tem marca. Não cabe em nenhum embrulho. O presente que ganhamos da minha mãe foi uma pequena árvore. Não uma árvore de Natal, uma planta mesmo, para colocar na varanda. Batizamos de “Matinho da Vila”. E desde que chegou, a casa nunca mais foi igual.

Matinho da Vila é um bambu-mossô, espécie de planta da qual eu nunca tinha ouvido falar. Verde, torto, cheio de folhas, pela cara se vê que é japonês, chinês ou qualquer outro “ês” de olho puxado, e que deve ter nascido no meio de um jardim zen com propriedades místicas e transcendentais. Curioso a respeito do novo habitante da minha casa, fui então consultar a enciclopédia dos ansiosos, a internet, e me dei por satisfeito com uma pesquisa pouco acadêmica em três sites de credibilidade não verificada.

O primeiro site apresentava a versão sustentável, porém um tanto estranha, do novo ser que divide a varanda comigo. Feito com restos de um bambu morto, a planta fica no meio do caminho entre natural e artificial, criando um efeito estético bastante similar ao exemplar vivo, porém sem precisar de luz do sol, podas ou regas. Prático, mas mórbido. Para o mundo verde, a fábrica deve parecer um Madame Tussauds do mal. É como fazer uma estátua com os próprios ossos do defunto. E que me desculpem os donos de loja de shopping e de escritórios, mas se não quer regar, não pode ter planta. Ou então tem que comprar um cacto. Por precaução, não mencionei nada a respeito da minha descoberta em locais perto da varanda. Vai que Matinho da Vila resolve parar de fazer a fotossíntese, em protesto. O suicídio de uma árvore daquelas seria uma grande perda, não só para a natureza, mas principalmente para os meus domingos na rede.

O segundo site trouxe informações igualmente preocupantes. Pois saibam vocês que o bambu-mossô, o último dos românticos, que floresce somente uma vez a cada 67 anos e que, depois de florescer, geralmente morre por ter gastado toda a sua energia na reprodução (discípulos de Wando, façam reverência), não é naturalmente torto. Isso mesmo. Em outras palavras, se o seu bambu-mossô tem o caule torto, foi torcido por mãos humanas, em um processo de realizado logo nos seus primeiros anos de vida, para que fique mais bonito. De fato, fica legal, mas tenho certeza que Matinho da Vila não optaria por tão dolorosa cirurgia estética nem mesmo que fosse feita por Ivo Pitangui. Agora o mal está feito. Como disse o É o Tchan, “pau que nasce torto nunca se endireita”. Mas Matinho da Vila nasceu reto, que fique registrado.

O terceiro site, este sim, finalmente atendeu às minhas expectativas. Com um visual absolutamente constrangedor de coisas esotéricas, trazia uma matéria sobre o significado das plantas. E sem as divagações típicas destes textos de pouco conteúdo, dizia que a espécie bambu-mossô é “ótima para aquietar a mente”. E isso eu posso atestar. Não tem uma tarde que o Antonio não capota na rede logo embaixo da árvore. Não tem uma noite que eu não queira simplesmente ficar ali, admirando a vista, vendo o tempo passar. Não tem um dia que não eu pense: não vou fechar esta varanda. Finjo que é pela vista, que quase não há. Finjo que é pelo vento, que entraria de qualquer forma. Mas sei que é para ter um simulacro de quintal no apartamento. Um lugar tranquilo, com uma árvore e uma rede, para não se fazer nada. Só para parar e respirar.

Obrigado, mãe, pelo menos tradicional dos presentes de Natal. Matinho da Vila nos faz muito boa companhia. Escuta em silêncio. Faz barulhos com o vento. Às vezes parece que sorri. Só falta cantar.





Feliz Natal a todos.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Promessa

Na próxima segunda, dia 24 de dezembro, o blog volta a ativa. Presente de Natal para quem ainda acredita: em mim e no Papai Noel.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Caixas de fósforos

Em novembro do ano passado, escrevi um texto sobre a chegada antecipada do natal, o consumismo exagerado e os brinquedos que realmente marcaram a minha infância. Entre eles, estavam as caixas de fósforos que minha avó de Porto Alegre guardava para os netos montarem trens, cidades e o que mais pudessem imaginar. Passei anos brincando com essas caixas.

Ao ler o texto, emocionada, minha querida avó imediamente recomeçou a colecionar caixas de fósforos, para quando os bisnetos fossem visitá-la, inclusive o Tom Tom.

Coincidentemente, cerca de um ano depois da publicação do texto tenho a primeira oportunidade de levar o Antonio ao Rio Grande do Sul, junto com meus sobrinhos, primos dele, para visitar a bisa. Estavam lá não só as caixas de fósforos, como outros diversos brinquedos antigos que acompanharam a nossa família por quatro gerações.

No mesmo lugar que me divertia na infância, vi meu filho e meus sobrinhos repetirem a farra que meus primos e eu vivíamos há 20 anos. Pude sentir toda a alegria da minha avó. Pude entender porque recordo com tanta saudade daqueles tempos. Fiquei imensamente satisfeito por ter atravessado metade do país neste final de semana. Os olhos do Antonio e dos meus sobrinhos naquele dia disseram tudo. Felicidade é coisa simples. E relativamente fácil de encontrar.




Se quiser ler o texto do ano passado, clique aqui:
Toys R Us

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Prefiro Crocs


Contou-me a babá:

Meu sobrinho Felipe, de 5 anos, estava assistindo a uma partida de tênis na beira de uma quadra. Uma pessoa se aproximou e perguntou:
      Você gosta de tênis, Lipe?
      Não. Prefiro Crocs.



*

Minha sobrinha Maria Eduarda, de 6 anos, chegando de viagem à Disney.

Eu:
      Eu deixei você viajar com a minha mulher durante uma semana inteira e você não me trouxe nem um presente?
Ela:
      Eu trouxe a sua mulher de volta de presente.

*

Brincando com meus três sobrinhos, Dudu, Felipe e Henrique, irmãos de 7, 5 e 2 anos, respectivamente.

      Quantos anos você tem, Dudu?
      Sete.
      E você, Felipe?
      Cinco.
      E você, Henrique?
      ... Não xei.

*

Maria Eduarda vai ao aniversário de um dos meus sobrinhos. Brinca e se diverte a tarde inteira. Ao final do dia, minha irmã diz:
      Maria Eduarda, você tem que nos visitar mais vezes!
Ela:
      Tá bom. Eu posso sábados e domingos.

*

Há algum tempo.

Dudu:
      Dindo, brinca com a gente.
Lipe:
      Dindo, eu quero ser do seu time.
Isabela, prima deles:
      Tio Fábio, posso te chamar de Dindo também?

*

Maria Eduarda conversando com uma amiga depois de visitar a obra da minha futura casa.

     O apartamento novo da Ana é lindo. E quando tiver as coisas dentro, vai ficar mais lindo ainda.

*

Há bastante tempo.

Dudu:
      Dindo, lê esse livro para mim enquanto eu faço cocô.

Começo a ler. Lá pela terceira, quarta página, ele diz, fazendo força:

      Dindo, vai mais rápido que eu já tô quase acabando.

*

Moral da história:

Entendo quem não queira ter filhos, mas nunca vou compreender quem diz que não gosta de criança.

Nunca.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Mudança


Estou de mudança. Literalmente. Caixas, caminhão e centenas de ligações para acionar o gás, a luz, o telefone, a internet, a TV por assinatura. Os próximos dias são de transição. Fico com duas casas e, ao mesmo tempo, meio sem lar. As roupas estão em um endereço, os controles remotos já estão em outro. O filho está em um terceiro, a casa da avó. A mulher, merecidamente, viajando de férias com as parentas. Sozinho, vou escrevendo as últimas linhas de uma história que foi muito mais intensa do que imaginei: a história da casa em que a Ana e eu iniciamos a nossa família. O lugar em que geramos uma vida, sem saber que na verdade estávamos gerando a virada das nossas próprias vidas.

Há alguns dias li na internet uma carta que teve enorme repercussão. Foi escrita por John Franklin Stephens, um norte-americano com síndrome de Down, em resposta à atitude de Ann Coulter, uma partidária republicana, que havia se referido ao democrata Barack Obama como “retardado” em uma rede social. Com extrema elegância, o autor da carta disserta sobre a inadequação do termo, não apenas para definir o político em questão, mas também para se referir a qualquer pessoa. E conclui com um convite absolutamente gentil para que a agressora visite e conheça o time de atletas especiais do qual ele, Stephens, faz parte. “Veja se você consegue sair com o seu coração inalterado”, desafia o rapaz.

Talvez ele não tenha sucesso com Ann Coulter, porém sem dúvida já amoleceu milhares de outros corações. A carta é bem escrita, contém uma ironia inteligente e seria admirável mesmo que o autor não tivesse deficiência alguma. Disfarçada de discussão sobre o uso da palavra “retardado”, a carta é um manifesto em favor do respeito às pessoas, de forma plena e universal, seja político, seja negro, seja deficiente físico ou intelectual.

Li, gostei, espalhei e achei que a carta seria tema único do post. Porém, para minha surpresa, a semana ainda me reservava mais um divertido ataque a diversos preconceitos, em especial o preconceito contra pessoas com deficiências físicas. Por um milagre da minha circunstancial vida de “pãe” e mestre-de-obras, arranjei um jeito de ir ao cinema e ver “Intocáveis”, filme que tanto me recomendavam. A esta altura, acredito ser o último terráqueo a conhecer a história do imigrante pobre e negro que se tornou cuidador de um homem rico e tetraplégico, e o faz da maneira menos convencional possível. E, como muitos haviam me prometido, saí do cinema com um sorriso por dentro.

Para mim, o especial da história é o jovem não fingir que não vê. Ele se recusa a respeitar os códigos sociais hipócritas, os quais não sei se desvaloriza ou se simplesmente não compreende. Quando vê algo diferente, como um homem sem os movimentos, ou uma mulher muito bonita ou uma pintura ridícula que vale 30 mil euros, o rapaz arregala os olhos, faz perguntas e, diferentemente da maioria, verbaliza a sua opinião mais sincera sobre o assunto. Ri do que é ridículo, lamenta o que é triste e toca a vida sem se fazer de vítima, sem ter pena de si, nem dos outros.

Quando algo triste e inesperado acontece, é quase impossível não sentir pena de quem sofreu o baque. É difícil olhar para uma deficiência causada por um acidente, por exemplo, sem refletir sobre o sofrimento daquela pessoa, ou sem se deixar abater pelas dificuldades daquela nova situação. Acidentes com sequelas, síndromes genéticas, doenças terminais, deficiências físicas ou intelectuais são sim assuntos muito complexos de absorver, especialmente para quem nunca os teve por perto. Em um primeiro momento, a pena é um sentimento involuntário e natural. E não devemos nos culpar por tê-la.

O problema é que a pena é como uma catarata nos olhos: com o tempo, vai cegando. Quando persistente, a pena se disfarça de sentimentos como ternura e compreensão, mas na verdade é indício de preconceito e não-aceitação. Alimentar a pena é acorrentar o sujeito ao estigma do coitado e eternizá-lo na posição de “café-com-leite” da vida. Ter pena é pensar que os outros não poderão mais correr, casar, comer, viajar, transar, dançar, rir, chorar, trabalhar. Ter pena é acreditar que após uma adversidade é impossível ser feliz.

Quando estou com o Antonio nas ruas, recebo muitos sorrisos bondosos. As crianças, por outro lado, arregalam os olhos, franzem a testa, fazem caretas, às vezes voltam alguns passos para olhar mais de perto para o rosto do meu filho. É claro que isto me agride por dentro, mas compreendo. O Antonio chama atenção. É natural que os pequenos o explorem. O que me incomoda, entretanto, é a reação de alguns pais, quando percebem que meu filho é especial. Muitas vezes, por um reflexo automático, esforçando-se para manter o sorriso no rosto, puxam de leve os seus próprios filhos pelos braços, afastando-os do Antonio, interrompendo qualquer possibilidade de interação. (Daí, pela minha interpretação, a total adequação do título do filme “Intocáveis” – a primeira ação que o preconceito elimina é o toque.)

Porém, aos poucos, espalhando informação, aprimorando a minha reação, vejo o cenário em minha volta mudar. Sinto amigos, familiares e conhecidos seguros ao interagirem comigo, com a Ana e principalmente com o Antonio. Vejo desconhecidos mais confortáveis em perguntar o que ele tem, e agir naturalmente após uma ou duas respostas básicas. Empacotando nossos pertences para levar à casa nova, vou relembrando o quanto cresci – o quanto crescemos – com a chegada do Tom, e como as coisas se acalmaram desde então. 

O pai sofrido que fui há alguns meses ficará nesta casa antiga, junto com outras lembranças, pois já não existe mais. O que minha família passou deixou sequelas, formou cicatriz, mas nos transformou em pessoas mais capazes de lidar com os desafios da vida, que são muitos. E percebo que, assim como o garoto com síndrome de Down que escreveu a carta, assim como cuidador marroquino e o deficiente francês que inspiraram o roteiro de "Intocáveis", assim como o meu filho Antonio, cada vez mais pessoas estão quebrando preconceitos e transformando as pessoas em seu redor. Pode soar ingênuo, pode soar demasiado esperançoso, mas acho que o mundo também está de mudança. Para melhor.


segunda-feira, 8 de outubro de 2012

(des) Culpa

Prólogo

Inspirado pelo clima de eleições políticas, na semana passada prometi que até sexta-feira escreveria algo, não cumpri, mas vou deixar por isto mesmo, na esperança de que meu eleitorado em breve se esqueça, ou que tenha preguiça de reclamar seus direitos, por ter coisas mais importantes a fazer, como, por exemplo, assistir à derrocada da Carminha em Avenida Brasil.

Sim, apesar do tom frio e do olhar sereno, é claro que sinto algum peso na consciência por este desvio de caráter, como sentem, sem dúvida, os políticos que prometem o éden na campanha e fazem o indizível depois de eleitos. Acredito até que eles só conseguem dormir porque a recompensa de fazer o indizível no poder público inclui, entre outros prêmios, a possibilidade de adquirir imóveis espetaculares à vista, a habilidade de conquistar mulheres 20 anos mais novas e a certeza de desfrutar da companhia delas em seus lençois de algodão egípcio 1500 fios. Exceto o tamanho do imóvel, a diferença de idade da mulher e a qualidade da roupa de cama, estou no mesmo ponto que eles: certo de estar errado, fico somente esperando a culpa passar.

O pior é que a culpa passa. E as pessoas esquecem. E o tempo apaga. Ou distorce. Esta é a minha esperança. Tomara que os leitores deste blog esqueçam a segunda passada, “a segunda em branco”, e que me reelejam, já nesta semana, como alguém merecedor de sua atenção. Afinal, em time que está ganhando não se mexe. E tem muita promessa vazia por aí ganhando eleição.

Sigamos ao texto da semana de fato. Se não nas urnas, ao menos aqui, chega de embromação.

*

Texto de fato

Há algum tempo eu cultivava o hábito de dizer que tinha nascido uns vinte, trinta anos atrasado. Argumentava que o tempo andava rápido demais para mim. Dizia que gostaria de ter trabalhado no tempo da máquina de escrever, das cópias em papel carbono e das mensagens por carta, que demoravam para chegar. É claro que uso internet, avião, celular. Mas a voz que habita a minha cabeça – aquela que a gente escuta quando lê um livro, aquela que fala as verdades que não saem da boca – volta e meia repete que eu viveria melhor se o mundo girasse um pouco mais devagar.

É estranho viver na contramão da própria geração. Estou sempre rodeado de gente pré-adaptada à próxima invenção, seja inovação tecnológica, seja descoberta científica, seja o que for. Enquanto eu, olhando para o teto do meu quarto sem TV, sorrio com o canto da boca ao imaginar uma biblioteca de madeira, cheia de livros de papel, e muitas tardes à toa, para aproveitá-la. 

Assim está bom
Ainda no campo da diversão, ignoro solenemente qualquer tipo de vídeo game; assim como a minha avó, prefiro um carteado. Meu computador não é de última geração e serve somente para eu escrever e me comunicar, não mais do que um papel em branco, ou um telefone bem equipado. Até aproveito os recursos dos dias atuais, mas a minha alma se sente residente de outro tempo. Não sei exatamente qual, mas sei que é no passado.

Como diz um ditado popular, é preciso ter cuidado com o que se deseja. Eu e minha vontade de arrastar os dias fomos ouvidos e premiados. Tive um filho há quase dois anos e ele se comporta como se tivesse apenas seis meses de idade. Recém aprendeu a sentar, há pouco começou a me reconhecer, posso até imaginar Deus (ou a natureza, ou seja lá quem fabrica a vida) satisfeito consigo mesmo: “Este foi feito sob medida. Este saiu exatamente como o encomendado.”

E cá estou eu, vivendo um paradoxo existencial. Ansiei por um ritmo mais lento em tudo na vida; e agora, que meu filho atende este desejo ao extremo, sinto-me absolutamente angustiado.

Não é culpa do Antonio, é preciso dizer. A seu tempo, ele tem feito progressos imensos. Come bem, dorme com regularidade, cresce e engorda dentro da média das crianças e bem acima das expectativas médicas. 

Em termos de desenvolvimento motor, a todo tempo faz um imenso esforço para equilibrar a cabeça, ou para alinhar o tronco quando se senta; tenta ficar sem as mãos apoiadas no chão; estica-se para pegar os brinquedos; recoloca-se incessantemente na “posição do gato”, de quatro, mesmo sem ainda conseguir mover as mãos ou as pernas para engatinhar; tem cada vez mais levado os brinquedos à boca para explorá-los; mesmo que involuntariamente e sem razão específica, bate palminhas; firma as pernas quando o colocamos em pé; bate as mãos na água; aceita todo tipo de papinhas e dá sinais de que algum dia poderá conseguir mastigar a comida. 

No desenvolvimento cognitivo, o Antonio vai mais devagar, mas também evolui. Aos poucos, ele tem entendido o que é “ir para o banho”; já olha discretamente quando chamamos o seu nome; tem balbuciado alguns sons com maior frequência; acompanha desenhos e outros programas na televisão; ri em situações específicas; desenvolve afeto especial por alguns brinquedos e começa a fazer “escolhas” quando oferecemos mais de uma opção. Dentro dos seus próprios limites, o Antonio raramente demonstra preguiça ou malcriação nas suas atitudes. Ao contrário, sentimos que ele se esforça. E que aos poucos está despertando para o mundo à sua volta. Com muita frequência nos impressiona com alguma nova atitude. Com mais frequência ainda, faz algo engraçado.

Ou seja, a culpa é minha, pois mesmo sabendo que não posso consertar o problema do meu filho, insisto em me encher de expectativas. Repito “papai” de um jeito irritante para o Antonio, tentando enfiar ouvido adentro uma informação que talvez o cérebro dele esteja verde demais para interpretar. Procuro identificar padrões em todos os comportamentos dele, para apenas poder batizá-los de aprendizado, de habilidade conquistada. E desejo, incontrolavelmente, que o Antonio acompanhe um pouco mais o tempo, este apressado, este maldito, que insiste em deixar para trás não só a minha alma, mas agora também o melhor fruto dela, que é o meu filho.

De vez em quando vejo alguém dizer que as crianças de hoje em dia são muito espertas, que já nascem sabendo mexer em computador e passar os dedos nas telas touch screen. Adoraria engrossar o coro, mas não posso. Meu filho não nasceu esperto. E só agora começa a entender a utilidade das próprias mãos. Acho que minha constituição antiquada não passou para ele informações suficientes. Acho que respirei ácaros demais nas minhas bibliotecas imaginárias e prejudiquei a herança genética dos meus filhos. Agora sério: acho que minha mulher e eu desconfiaremos pelo resto das nossas vidas se fomos culpados pelo o que aconteceu ao Antonio.

Os exames realizados até agora indicam que não. A medicina acredita que não, que poderia ter acontecido a qualquer casal. Ainda assim, quando vejo meu filho lutar para fazer o que deveria ser instintivo, preciso admitir que muitas vezes me questiono. “Se a Ana tivesse engravidado no dia seguinte, teria sido diferente?” E a culpa volta, porque pensar desta maneira não leva a lugar nenhum. Certo de estar errado, fico esperando a culpa passar.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Aviso

Por desorganização do autor e por conta de muito trabalho, o post desta semana sairá até sexta. Desculpe o atraso.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Amor na Pangeia

Até que se prove o contrário, vigora a teoria de que, há 200 milhões de anos, ou 540 milhões, não se tem certeza, os continentes eram um bloco de terra chamado Pangeia. Não que alguém de fato a chamasse assim, visto que o primeiro ancestral do homem àquele tempo ainda nem pensava em ser uma ideia possível, muito menos em existir. Porém, é justo pressupor que algum tipo de vida havia, e que este ser vivo – ao qual, por questões práticas, chamaremos de Pablo –, assim como qualquer outro ser biologicamente ativo, só pensava em comer, fosse para logo em seguida se atirar na rede com um palito de dentes no canto da boca, fosse no sentido, digamos assim, menos literal: o de se reproduzir.

Pablo era um desses primeiros lagartos de tamanho modesto e pernas finas que perambulavam Pangeia adentro afoitos por comida e fêmeas. Não tinha lá grandes ambições além das que envolviam a própria sobrevivência e a continuação da espécie. Seu cérebro pouco avantajado nunca seria capaz de imaginar, nem mesmo no seu ponto mais alto de falsa modéstia, que seus hectanetos, meros milhões de anos depois, teriam as dimensões e a imponência de prédios de três ou quatro andares, e que seriam tão respeitados, tão admirados, tão temidos, que entrariam para a história com um nome bastante fidedigno ao seu status quo na sociedade cretácea – os tiranossauros.

Pois bem. Fazia uma linda tarde de sol sem previsões de erupções vulcânicas nas areias de Ipanema, praia que ainda não existia e que, por estar localizada bem ao centro da Pangeia, assemelhava-se mais ao interior do Mato Grosso do que ao atual Rio de Janeiro, quando Pablo avistou Maria Cristina pela primeira vez.

Maria Cristina, para os que ainda não deduziram, era uma réptil mais ou menos idêntica a Pablo, com as únicas diferenças de que era capaz de botar ovos e tinha a decência de não arrotar após se fartar com as entranhas de um inseto ou com outro quitute de igual teor gorduroso. Não era exatamente uma mulher graciosa. Tinha os olhos um tanto esbugalhados e a pele enrugada. Mas para Pablo pareceu uma visão de Afrodite, mesmo que ele não tivesse a menor ideia do que uma deusa grega viria a ser, parecer ou significar.

É verdade que Maria Cristina não sentiu os mesmos arrepios de seu pretendente na ocasião do primeiro encontro. Porém, ela andava preocupada, já não era mais mocinha, e as vizinhas, todas bem arranjadas, começavam a comentar. Mais por desespero do que por desejo, achou oportuno soltar os feromônios para aquele forasteiro magricela que, apesar de um tanto inseguro e zero sex appeal, ao menos serviria para acertar os ponteiros de seu relógio biológico, cujo alarme já berrava de vontade de ver a casa cheia de lagartixas engatinhando de fraldas para lá e para cá. Após uma desastrosa investida de Pablo, que se aproximara lambendo os lábios e colocando as mãos onde não devia, Maria Cristina respirou fundo e, determinada a desencalhar e calar a boca das amigas, aceitou reencontrá-lo naquele mesmo lugar, dali a dez minutos, para o acasalamento.

O sangue gelado de Pablo borbulhava de ansiedade. Não somente por seu instinto de macho alfa – ou beta, ou gama... deixa pra lá –, mas também porque seus amigos, um bando de zombadores, como todo grupo de machos na natureza, faziam correr um burburinho pela Pangeia. Era só tomarem uns copos a mais para soltarem, às gargalhadas, que as buscas de Pablo pelo pão de todo dia e por namoradas até então só haviam sido bem sucedidas no primeiro intento. Ninguém poderia afirmar, mas para todos os que o conheciam de perto, Pablo ainda era virgem. Suspeita que ele ansiava avidamente por enterrar.

Mas a Pangeia era um continente irônico e, justo no momento em que Pablo avistou Maria Cristina se aproximar do local combinado, completamente nua e irresistível, as placas tectônicas da Terra resolveram discutir o relacionamento e desfazer uma união que já durava muitos bilhões de anos. Foi um desespero só: pedras rolavam montanha abaixo, árvores estratosféricas caíam feito fruta madura, animais de todos os portes eram esmagados, o mundo inteiro se chacoalhava. Com as vizinhas correndo desesperadas por cima de seu ninho de amor, Maria Cristina não sabia se as acompanhava na fuga ou se procurava algo para cobrir as partes íntimas. Pablo, atordoado com o caos repentino, não se preocupou em esconder o membro em riste: tentava a todo custo encontrar um jeito de se equilibrar naquela tremedeira e de chegar vivo a uma pequena caverna logo em ali em frente, onde se protegia e se encolhia, em choque, a sua amada.

No instante em que Pablo tentava um salto maior do que a sua fina e minúscula perna, uma fenda colossal se abriu no chão. Por pouco ele não despencou pelo precipício recém criado, como infelizmente o fizeram milhares de plantas e animais menos afortunados. Pendurado por apenas uma das mãos na ponta da falésia, ainda ofegante pelo susto, Pablo assistiu às vizinhas de Maria Cristina caírem no abismo, esperneando em vão no ar, até se tornarem um ponto minúsculo nas trevas e depois desaparecerem, ao ultrapassarem o limite da visão. Percebendo que a força em seus dedos se esvairia em pouco tempo, Pablo fez um esforço imenso para se reerguer até a terra firme. Sôfrego, ainda tentando recuperar o fôlego, não acreditou quando viu Maria Cristina na margem oposta daqueles paredões que agora se distanciavam. A Pangeia estava se dividindo. E eles não estavam do mesmo lado. Boquiabertos, sem tirar os olhos um do outro, eles se despediam sem dizer uma palavra sequer. O mal estava feito. Sabiam que seus destinos haviam mudado. Pablo viveria no Brasil, Maria Cristina em Angola. E eles passariam o resto de seus dias separados por um oceano Atlântico que meia hora antes não estava ali, mas que naquele instante já se impunha caudaloso, intransponível, e que só bilhões de anos depois seria atravessado.

Aqui a história de Pablo poderia enveredar para um parágrafo de lamúrias e sofrimento, porém desde os tempos da Pangeia as leis da natureza são as mesmas: passado o impacto, contados os que sobraram, a vida rapidamente toma rumo. Pablo se ajeitou com uma prima de segundo-grau de Maria Cristina. Não era muito bonita, a pele ainda mais áspera que a da prima, mas era boa moça e logo teve uma ninhada. Em poucos meses, aborrecido com a vida pacata de casado, Pablo decidiu sair para comprar cigarros. Nunca voltou, não se sabe ao certo se encontrou parceira melhor no caminho ou se foi engolido por algum predador, sendo esta segunda possibilidade amplamente aceita como a mais provável. Já Maria Cristina foi muito feliz com um tipo da Namíbia, bem mais alto, mais belo e mais forte do que Pablo, e produziu descendentes da melhor qualidade, hoje entre os fósseis mais valiosos do mercado.

Tudo isto nos leva a crer que o amor não passa de uma conveniência geográfica. E que é muito estranho alguém acreditar que, entre seis bilhões de seres humanos no mundo, exista uma alma gêmea morando exatamente na mesma cidade, passeando pelo mesmo bairro, quem sabe viajando no assento ao seu lado. Nos apaixonamos por quem escolhemos, onde buscamos e pelo tempo que queremos. Não há razão para complicar o que é simples, a não ser que se queira passar a vida esperando a pessoa certa aparecer ou, pior ainda, esperando a pessoa certa voltar. A conclusão é polêmica e não tem base científica. Para o leitor mais cuidadoso, é até fácil redarguir. Afinal, em rápida pesquisa descobre-se que os tiranossauros nunca viveram no Brasil; portanto, não podem ser hectanetos de Pablo. Se o autor se enganou em ponto tão contestável, talvez ainda reste esperança a quem sonha em encontrar a pessoa ideal. A história, desde quando ainda era pré-história, mostra que isto não existe, mas ainda assim não falta quem queira procurar.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Queremos sangue

Após tomar um tapa na cara, a ruiva se levanta da cama e anda até o espelho do banheiro. Ela tira um batom vermelho do bolso e abre um pouco os lábios para retocar a maquiagem. Em silêncio absoluto, um homem surge na janela, com um fuzil nas mãos. Antes que se possa raciocinar, um tiro estrondoso faz a cabeça da mulher explodir, jorrando sangue e miolos na parede. Meu filho assiste a tudo de boca aberta e olhos arregalados. Mal respira, tamanha a concentração. Um ano e sete meses. Fã de filme de ação.

É claro que nem minha mulher nem eu havíamos percebido que o Antonio tinha desistido de brincar com o seu pinguim inflável – coisa que não é pouca, já que o pinguim é definitivamente o seu melhor amigo, real e imaginário, ganhando em estima do pai, dos avós, da babá e quiçá da mãe – para se compenetrar no filme impróprio para menores de 16 anos a que estávamos assistindo. Tentei virá-lo contra a tv. Em vão. Tentei tapar os olhos dele nas cenas mais pesadas. Perda de tempo. Assim que eu olhava para a tela, ele desviava para escapar do bloqueio. Pequeno sim, bobo não.

O filme de fato tinha um cardápio variado para quem gosta de violência. Não se limitava a tiros à queima-roupa. Teve morte a garfadas, crânio esmagado com pisadas, pulso cortado a navalha, faca na garganta, afogamento forçado e o clássico capotamento colina abaixo após perseguição de carro. Teve até um romancezinho sem sal para entreter as damas da casa – no caso, peça única: a Ana. Mas desta vez quem se deu bem fomos nós, os homens, com nosso cérebro programado para gostar de planos de vingança mirabolantes e atiradores que encaram máfias inteiras sem sofrer um arranhão. Quem se deu bem fomos eu e o Antonio, que ainda nas fraldas já demonstra gosto cinematográfico apurado. Agora tenho parceiro para rever pela septuagésima vez a trilogia do Poderoso Chefão.

Sei que não será fácil concorrer com o incrível pinguim inflável, um ágil joão-bobo, que ao melhor estilo Rocky Balboa, encara sequências infinitas de golpes sem se deixar abater e ainda se levanta de volta com um inabalável sorriso na cara. Tenho consciência de que será difícil competir com os filmes da Galinha Pintadinha, cuja trilha sonora figura há quinze meses no topo das paradas lá em casa. Mas tenho Chuck Norris, Arnold Schwarzenegger e Jean-Claude Van Damme ao meu lado. Tenho Steven Spielberg, James Cameron e até Woody Allen para me ajudarem. Não sei se algum dia meu filho vai assistir a um filme de cabo a rabo. E não tenho muitas esperanças de que um dia ele saia da infância ou seja capaz de entender uma história completa. O fato é que não vejo a hora de levar o Antonio ao cinema. Afinal, ser pai é um pouco disso: mostrar o quanto o mundo pode ser divertido. E se for preciso ketchup voando para que o meu filho se divirta, é ketchup voando que iremos ver.



segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Sem resposta

Neste final de semana fizemos programa de homem, meu filho. Fomos juntos levar o carro à oficina. Eu meio com preguiça, você muito bem disposto. Nunca vi gostar tanto de sair de casa. “Nasceu com formiga na bunda”, costumo dizer.

Calcei um par de tênis em seus pés, apesar de você ainda não utilizá-los. Gosto de vê-lo calçado. Digo que é para colocá-lo no chão quando as minhas costas e os meus braços cansarem. Você de fato está inacreditavelmente pesado e carregá-lo no colo não tem sido fácil, mas sei que os sapatos são na verdade uma maneira de extravasar a minha ansiedade de vê-lo caminhar. É difícil explicar. É como se fosse uma questão de honra. Como um aposentado, que mesmo sem nada para fazer, não perde o hábito de vestir o terno. O sapato é um símbolo que ameniza a minha frustração e traz um pouco de normalidade à nossa vida – na sua idade não se anda mais de meias pela rua. Perdoe esta minha malograda encenação. Aceitar o seu ritmo e não compará-lo a outras crianças tem sido uma verdadeira provação para mim. Falho sempre, mas procuro não deixá-lo perceber.

No caminho para a oficina, revezava meus olhos entre o trânsito e a sua imagem no espelho retrovisor. Como a maioria das crianças, você se acalma no carro. Dá algumas gargalhadas sem motivo. Desconfiamos que seja o passar das árvores, mas não podemos afirmar. Exceto o barulho de alguém tossindo ou imitando bichos, não há um padrão do que é engraçado para você.

Enquanto assistia a imagem da rua borrar, você mantinha os olhos perdidos ao longe, como se estivesse pensativo, como se pensativo fosse algo possível para um bebê. Talvez os olhos se explicassem menos pelo o que ocorria lá fora e mais pelo seu imenso prazer em enfiar dois, três, quatro dedos na boca de uma só vez até engasgar. Olhando de soslaio para o espelho, falei com firmeza: “Antonio, tira a mão da boca.” Você me ignorou.

Sem poder parar e tirar a sua mão por conta própria, decidi falar um pouco mais alto: “Antonio, meu filho, tira a mão da boca.” Novamente, nenhum retorno.

Então optei por algo que não costumo fazer: dei um grito. “Antonio! Tira a mão da boca!” Você não piscou, não olhou para mim, não expressou absolutamente nada. Enfiou um pouco mais a mão na boca, olhos voltados para lugar nenhum. Intrigado, ocupado em dirigir o carro, fiquei na dúvida se você não foi capaz de me ouvir (ainda não sabemos muito sobre a sua audição). Ou pior, se não foi capaz de interpretar um tom de voz que até um cachorro captaria. Sua imobilidade mexeu comigo. O que você entende, meu filho, quando falamos com você?

No dia seguinte, obviamente sem resposta para a minha pergunta, seguimos com a nossa rotina de fins de semana. É um cronograma bastante repetitivo, mas acreditamos que isto o ajude a se manter saudável, a dormir melhor e a entender o que acontece em sua volta. À noite, por exemplo, sempre tomamos banho a uma mesma hora e relaxamos um pouco em frente à tv. Foi neste momento que você começou a chorar sem um motivo visível.

O seu choro, Antonio, é a única forma consistente de comunicação que até agora percebemos em você. Às vezes é manha, às vezes é incômodo, mas majoritariamente é você tentando se fazer entender. No choro deste domingo, entre lágrimas, babas e suspiros, você balbuciou “mama”, assim aleatoriamente, meio sem querer. “Mama” pode ser mamãe, ou pode ser o “mamá”, que todas as noites, naquela exata hora, você costuma tomar. O que será que você disse, meu filho? Pediu a mamadeira? Chamou sua mãe? Ou será que são apenas meus ouvidos, esperançosos, achando forma onde não tem?

Por enquanto, tudo é mistério. Tenho retribuições pelo seu olhar, pelo seu sorriso, pelas suas mãos que me tocam quando aproximo meu rosto do seu. Ao mesmo tempo, sinto que você nunca perceberia se eu desaparecesse. Você vai com estranhos do mesmo jeito que vai com a família. Reconhece, mas não dá certeza. Tudo não passa de suposições que fazemos a seu respeito.

Sei que sentimentos não precisam de signos para existir. Qualquer pessoa sabe o que é amor muito antes de conhecer a palavra que o descreve, muito antes de compreender o que “amor” quer dizer. Perdoe o seu pai, meu filho, por desejar mais do que você pode dar. Perdoe-me por eu deixar nascer dúvidas onde deveriam haver certezas, e por pedir algum tipo de confirmação. Mas a verdade é que o meu coração precisa saber: você sente alguma coisa quando eu digo que amo você?

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Omelete



− Você tem outro?
− Hum?
− Você me ouviu muito bem, Carolina. Responde.
− ...
− Responde!
− Não.
− Não responde ou não tem outro?
− Não tenho outro, Victor. Não te-nho ou-tro. Entendeu ou quer que eu desenhe?
− Então por que demorou tanto pra responder?
− Ah, sei lá, Victor. Que papo chato. Eu aqui, toda disposta fazendo comida pra gente e você aí falando besteira. Eu vou colocar um presunto picadinho na minha omelete. Você vai querer?
− Não, mas não foge do assunto, Carolina. Por que demorou pra responder?
− Porque você está sendo um grosso, Victor. Porque fica sugerindo que eu sou uma vagabunda oferecida. Olha, Victor, eu vou dizer uma coisa pra você. Se eu quisesse botar um par de chifres nessa sua cabeça, eu já tinha botado há muito tempo. Porque você sai pra beber com o Dedéu, vai pra não sei onde, volta sei lá que horas da madrugada e eu nunca faço uma pergunta sequer. Não dou um pio. Fico na minha, só na confiança. E agora você me vem com esse nhe-nhe-nhém de "você tem outro"? Ah não, meu bem, aqui não.
− A Júlia esteve aqui ontem.
− Ah, é? De novo? Veio pedir a furadeira pela vigésima vez? Que fofinha... O que você fez? Deu uma furada nela?
− Depois eu que sou o grosso.
− Ah, tenha santa paciência, Victor. Essa piranha bate aqui o que... três vezes por semana? Queria ver o que você faria se eu ficasse pedindo pro vizinho me ajudar a pendurar quadro, a ver o vazamento do teto, blá, blá, blá. Isso é tudo desculpa pra falar com você, Victor. Você sabe disso. E o pior: você a-do-ra isso.
− De que vizinho você está falando?
− De vizinho nenhum, Victor. Meu Deus do céu! É uma situação hipotética! Eu estou dizendo que se fosse eu que batesse na porta dos outros, se fosse eu no lugar dela, você estaria todo desconfiado. Agora me diz: que história ela inventou pra vir aqui dessa vez?
− Ela estava com um problema.
− Ah, mas é claro. Porque além de policial militar, você é um excelente psicólogo, né, Victor? Ai, que ódio daquela vaca.
− Você está chorando?
− Foi a cebola.
− Não bota cebola na minha omelete, por favor. Você sabe que eu não gosto de cebola.
− E você sabe que eu não gosto daquela vagabunda!
− E do namorado dela, Carolina? Você gosta do namorado da vagabunda?
− Do que você está falando?
− É, Carolina, para sua surpresa, a Júlia tem namorado. Quer dizer, tinha. E para sua informação, ela nunca veio aqui pedir furadeira. Ela contratou uma investigação secreta.
− Investigação?
− Sim, Carolina. A Júlia desconfiou que estava sendo traída. E como eu mesmo pude constatar, ela estava certa. O filho da mãe tinha outra.
− E daí? O mundo está cheio de gente traída.
− É mesmo, Carolina?
− É, Victor. E quer saber? Eu estou de saco cheio dessa conversa. Não quero saber da Júlia, nem do namorado dela, nem da outra namorada dele. Toma aqui a sua omelete. Perdi o apetite. Eu vou tomar um banho.
− Você não quer saber o que aconteceu com o namorado da Júlia, Carolina?
− Não, mas pelo jeito você quer contar.
− Me passa a faca.
− Já está aí.
− Essa não. Aquela ali, de cortar carne.
− Pra que?
− Me passa a faca, Carolina.
− Ai, minha Santa Terezinha, toma essa droga dessa faca. E diz logo o que você quer dizer, pois eu quero tomar banho e dormir. Amanhã eu tenho que acordar cedo.
− Obrigado. Bem, como eu estava dizendo, a Júlia tinha um namorado. E eu disse tinha porque infelizmente ele foi achado morto hoje cedo.
− Morto?
− Esfaqueado.
− Que bizarro.
− É. Bizarro. E sabe o que é mais bizarro, Carolina? O cara estava traindo a Júlia com a namorada de um cara lá do quartel.
− Eu conheço?
− Conhece.
− Quem? Aquela loira que estava com o Dedéu?
− Não.
− Quem então?
− Pensa, Carolina.
− Ai, Victor. Sei lá. Diz logo. Eu não lembro das namoradas dos seus colegas. Só vi algumas naquele churrasco horroroso que você me obrigou a ir. É aquela baixinha, daquele gordo?
− Não.
− Desisto, então. Se quiser contar, conta logo, Victor. Sério. Eu estou cansada e tenho que acordar cedo.
− Eu descobri que o chifrudo do quartel, Carolina, não é o Dedéu. Também não é aquele gordo que, por acaso, se chama Antenor. Eu descobri que o corno do quartel, Carolina... sou eu.
− ...
− Que foi? Está surpresa?
− ...
− Fala alguma coisa, Carolina. Ou vai negar que você está se pegando há três meses com um advogado mauricinho filho de uma puta de esquina? Três meses, Carolina! Eu dando duro pra sustentar essa casa e você dando tudo o que é buraco praquele viado de terno, gravata e gel no cabelo. Você disse muito bem, Carolina. Se você quisesse botar um par de chifres na minha cabeça dura, já tinha feito há muito tempo. E não só o fez, como decidiu repetir o feito vinte e três vezes. Sabia que você deu vinte e três vezes praquele palhaço, sua piranha? Vinte e três vezes. Eu contei. E ainda vinha se roçar em mim à noite. Que apetite, hein, Carolina. Impressionante. Agora está aí, toda murcha. Nem parece a piranha que ontem mesmo estava pulando pelada em cima do amante. Diz alguma coisa, vagabunda. Você não tem nada a dizer?
− O Joaquim morreu?
− Não, Carolina. Tomou dez facadas e foi dançar balé. É claro que morreu, sua ignorante. Morreu de morte matada. Eu mesmo fiz o serviço. Com essa faca aqui.
− Você matou o Joaquim?
− Que isso? Vou ter que ficar repetindo? Além de piranha, ficou surda?
− Você é um monstro.
− Sou mesmo. Com vinte e três chifres na cabeça, anjo é que eu não ia parecer.
− Você devia estar na cadeia.
− E você devia estar num canil, sua cachorra.
− Eu vou embora.
− Não vai, não. Você vai ficar. Ainda mais agora que eu mudei de ideia.
− Que ideia?
− Sobre a omelete.
− Não entendi.
− Eu vou querer presunto. Bem picadinho.
− Victor, por favor, larga essa fac

− abão em pó Limpi, apenas cinco e sessenta e nove. Azeite de oliva La Siesta, dez e oitenta e nove. Farinha de trigo Soleil, dois e cinquenta e nove. Só na terça da economia Hiper Max. É mais barato pra você, é mais barato no Hiper Max.

*
Novo brinquedo do Antonio: controle remoto.