segunda-feira, 30 de julho de 2012

Cuecas comestíveis


As traças da minha casa são muito bem alimentadas. As mais sofisticadas deliciam-se sem culpa com dois ternos, um da safra de 2002, outro da safra de 2006, ambos com denominação de origem comprovada, envelhecidos em armário de compensado há pelo menos cinco anos. Outro grupo, mais up-to-date, prefere explorar a enorme gama de fibras tecnológicas e lançar tendências gastronômicas na prateleira de roupas esportivas, intocada por mim há no mínimo três anos. Por fim, as traças menos preocupadas com a forma física se fartam diariamente com uma ampla oferta de casacos e moletons completamente inúteis para o clima da cidade em que vivo. Incautas, glutonas e irracionais, tais quais seres humanos em bufê a preço fixo, elas ignoram o cheiro estranho da comida e entopem as coronárias como se não houvesse amanhã, servindo-se desmedidamente dos quitutes oferecidos no andar de cima do meu guarda-roupa. A gula é tanta, que outro dia encontrei uns furos numa samba-canção. Consigo imaginar a pobre coitada comentando. "Estou passando mal. Acho que tinha alguma coisa estragada naquela cueca."

A verdade é que, se você não for um monge franciscano e não tiver feito votos de pobreza, sem dúvida você tem coisas demais. E é também inquestionável que de tempos em tempos um pouco de descoisificação se faz necessária para qualquer pessoa, para usar um neologismo cunhado pelo irmão de uma amiga, no momento em que se livrava de CDs, DVDs e outros objetos pré-históricos que só servem para abrigar colônias de ácaros em nossas casas.

Uma das impressões mais marcantes que tive na viagem que fiz recentemente à Escandinávia foram o minimalismo e o pragmatismo da arquitetura de lá. Todas as estruturas parecem se comunicar de alguma maneira. Todos os espaços parecem buscar o menor denominador comum entre forma e função. Os desenhos dos prédios e produtos carregam uma competição implícita, em que designers, arquitetos e engenheiros disputam quem consegue aliar o mínimo de matéria-prima ao máximo de utilidade. Não há detalhes alegóricos. Não há desperdício visual. Invariavelmente bonitos, os espaços dão uma equivocada sensação de vazio. Na verdade, se afinarmos o olhar, percebemos que tudo está apenas em seu devido lugar.

São países que se descoisificaram na origem, na forma de pensar. Em uma conversa com uma amiga norueguesa, descobri um fato interessante daquele povo. Ela me explicou que, da mesma maneira que a síntese do brasileiro seria o “homem cordial”, criado por Sérgio Buarque de Hollanda, o símbolo do norueguês seria o “homem simples”. Em poucas palavras, a característica essencial dos indivíduos nascidos na Noruega seria ter uma predileção natural por uma vida sem excessos, alimentada pelo peixe pescado no dia, pautada pela discrição nas roupas, na moradia, na forma de agir. Pelo o que eu pude entender, o norueguês é simples meramente por repudiar a ostentação, e não por falta de formação educacional, como seria o significado mais usual para simplicidade no Brasil.

Talvez esta seja uma das fontes para a escandinava parcimônia de pormenores em tudo, desde a estética das construções nas cidades, até o design de objetos do dia a dia, como a torneira do banheiro do hotel. Seguramente influenciado pelos ares nórdicos, voltei ao meu país com certa claustrofobia por causa da minha exagerada acumulação de miudezas, não apenas de pertences materiais, como as inúmeras peças de roupa que não uso, mas também de coisas abstratas, como os contatos no celular para os quais eu nunca liguei, os sites na internet que só me fazem perder tempo, as anotações em pedaços de papel que jamais consultarei. Assim como um sofá às vezes parece grande demais para uma sala, não raro tenho a sensação de que há algo obstruindo meu caminho, e acabo fazendo uma promessa interna de começar um processo de reorganização geral, a começar pela gaveta de meias, assim que eu tiver um final de semana mais tranquilo, sem nada que possa minar minha determinação.

Para felicidade das traças da minha casa, o tal fim de semana provavelmente nunca chegará. Dominado pela autocomiseração, vou deixando a promessa para o dia seguinte, para o mês que vem, para quando Deus dará. É que nos últimos tempos não tenho sido o homem cordial, inventado pelo pai do Chico. Nem o homem simples, que deve passar um frio danado pescando um bacalhau nos rincões da Noruega. Estou mais para homem franco. Talvez esta seja a melhor definição. Porque é mais fácil as minhas traças morrerem de ataque cardíaco por excesso de comida, do que o meu armário ver alguma arrumação.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Para falar a verdade

O maior motivo para a postagem desta semana não ter saído na segunda-feira é, sem dúvida, a minha desorganização. Porém, a medalha de prata, muito lá atrás, é preciso admitir, vai para uma indagação que certamente já passou pela cabeça de algumas pessoas que acompanham meus textos: será que não estou expondo exageradamente a minha vida, a minha família e, principalmente, o meu filho? 

Depois de muito matutar e remoer. Depois de reler um texto ou outro. Depois de passar horas comparando meu blog com outras crônicas da vida íntima, escritas por outras pessoas, cheguei a uma conclusão nada alentadora: sim, estou.

Não há complementos para a resposta. Ela é absoluta, finita e incômoda. Sim, estou. Não sei se isto é bom, mas também não sei se é ruim. Não tenho ideia se daqui a algum tempo estarei satisfeito por ter registrado esta fase única ou se serei mais um na multidão de arrependidos. O fato é que, enquanto instintivamente grande parte dos pais e mães escondem suas crias, eu exponho o meu bem mais valioso para quem quiser ver, feito joia em uma vitrine, protegida apenas por uma fina – e quebrável – lâmina de vidro.

A verdade é que o texto que eu publicaria nesta segunda está pronto há dias (sempre sujeito a últimos retoques, é verdade, por causa do meu incontrolável hábito de nunca achar que tenho o resultado final), mas faz parte de um pequeno grupo de pensamentos que hesitei em compartilhar. É que não foram palavras simples de expelir: foram agressivas. E tocam em um assunto muito difícil para qualquer pai e mãe – será que o seu filho é realmente um ser especial?

Bem, não gosto de suspense que não revela o criminoso. Então, mesmo sem ter certeza se é um texto saudável ou não, decidi que devo publicar. Talvez um dia eu me arrependa, talvez logo discorde das minhas próprias ideias. Mas pensando bem, este blog nunca existiria se eu fosse guiado pelo medo de errar.

Lá vai.

*

Para falar a verdade

Para falar a verdade, você não tem nada de especial. É como os outros. Mais um na multidão. Um número no ciclo da vida. Como todo ser humano, pouco mais do que um animal.

Para falar a verdade, você não tem nada de especial. Nem mesmo pelos cabelos que viram para o lado, nem mesmo pelos dedos gordinhos das mãos. As suas lágrimas são salgadas. O seu sangue é vermelho. Não há nada de muito específico. O habitual.

Para falar a verdade, você não tem nada de especial. Precisa de água pra viver. Precisa de ar pra respirar. Precisa dos outros. Precisa de amor. Natural.

Para falar a verdade, você não tem nada de especial. Acorda dezenas de vezes por noite. Suja as fraldas como toda criança. Treme de frio. Grita de dor. De fato, você tem um cheiro inebriante, mas isto todos os bebês têm. É o usual.

Para falar a verdade, você não tem nada de especial. Exceto, talvez, quando percebe que cheguei em casa e, mesmo sem saber se virar para mim, fica petrificado, prestando atenção em minha voz, esperando meu beijo, como se já soubesse o que está por vir. E depois de beijado, me olha nos olhos, com a boca entreaberta e um meio sorriso. É o nosso cumprimento. Quase um ritual.

Para falar a verdade, você não tem nada de especial. A não ser quando começa a rir antes mesmo de eu terminar de tirar a sua roupa para tomarmos banho. E ainda no meu colo, olha fixo em direção ao banheiro, onde a água já cai do chuveiro e nos aguarda, morna. Você abre o seu melhor sorriso aos primeiros respingos. Testa a água com a palma de uma das mãos e se encolhe sobre mim, em arrepios. Mergulhamos, conversamos, brincamos mais do que nos lavamos. No fim, entrego você para sua mãe, que o abraça pelas costas com a toalha e é recebida às gargalhadas, não sabemos ao certo se de cócegas ou de felicidade. Realmente um banho como outro qualquer. Sem dia marcado. Casual.

Para falar a verdade, você não tem nada de especial. A não ser pelo fato de andar na bicicleta que eu te dei sem ter a menor ideia da função de um pedal. Reclama do sol na cara. E olha para cima, hipnotizado, quando passamos pela sombra de uma árvore. Adora descidas, ainda mais quando vamos rápido. E se paramos de empurrar, você bate as pernas com impaciência, como se mandasse o seu cavalo seguir em frente. Um cavalo verde-limão, é interessante notar. E sobre o qual às vezes você dorme, bem no meio do passeio. Mas tudo bem. Não faz mal.

Para falar a verdade, você não tem nada de especial. A não ser por divertir-se como nunca quando faço o seu pinguim inflável girar na sua frente. Ou por sorrir toda santa vez que imito um animal, especialmente o cavalo, o dinossauro e o tubarão. Por sentar no meu colo com os olhos arregalados, e segurar o meu rosto com as mãos, e ficar balançando a minha cara para os lados, como se eu fosse uma bola. A expressão no seu olhar, não tem igual.

Para falar a verdade, você não tem nada de especial. A não ser por ter-me feito sofrer de um jeito que jamais pensei que pudesse aguentar. E por ter-me feito repensar toda a minha a vida. Por ter redimensionado a importância das coisas realmente fundamentais, como a saúde, a família e o trabalho. E por ter-me obrigado a voltar a ficar em pé, para ter condições de te criar.

Para falar a verdade, você não tem nada de especial. A não ser por me fazer mais feliz do que jamais pude imaginar, mesmo sem ter a menor ideia de quando você será capaz de me chamar de pai. Mesmo sem saber se um dia você conseguirá andar. Mesmo sem ter o direito de saber o que esperar de você. E ainda assim, todos os dias, esperar.

Nada de especial. A não ser por ter tirado os meus olhos do amanhã. E de ter feito eu aproveitar um pouco mais de cada dia que vivo.

Nada de especial. A não ser por ter os olhos mais doces que já vi.

Realmente, nada de especial.
A não ser por este detalhe que é ser uma criança com necessidades especiais.
E por ser impossível, impossível de não amar.



terça-feira, 17 de julho de 2012

A grama mais verde

Estou naquela idade em que os últimos amigos solteiros começam a pensar em se casar, em ter filhos, em comprar uma casa, enquanto os primeiros casados já começam a se separar. É como uma segunda adolescência: uma dura transição da vida adulta idealizada para a vida adulta que até então conseguimos realizar. Alguns planos já saíram do papel, alguns já mostraram que preferem ficar por lá. Ainda há sonhos na cabeça, mas alguns deles perderam parte do sentido, ficaram bestas, outros ainda nem tivemos coragem de tentar. Trinta e poucos é uma idade que já permite um primeiro balanço. É talvez a primeira parada que fazemos para rever nossas escolhas. Se algo não deu certo, ainda não temos tanto a perder. Ainda vale a pena recomeçar.

Quando busco algum tipo de referência para os meus próprios questionamentos, frequentemente me pego pensando no que outras pessoas já conseguiram realizar com o mesmo tempo de vida do que eu. E devo admitir que minha admiração vem maculada por certa inveja quando descubro que Roger Federer, por exemplo, não só conquistou o título de melhor tenista de todos os tempos, mas fez isto aos 30. Tomo um soco no estômago toda vez que leio sobre pessoas que mal saíram da faculdade e já são proprietários de negócios que valem milhões. Não é um sentimento fácil de botar pra fora, mas me sinto mal quando alguém com menos anos do que eu aparentemente tenha conseguido absurdamente mais.

Antes que me tachem de olho gordo e parem de me convidar para conhecer as casas novas, friso a importância da palavra “aparentemente” na frase acima. No fundo, todos nós compreendemos que ninguém luta em condições iguais. E, dadas as oportunidades e os obstáculos, cada um de nós faz o melhor que pode, num cabo de guerra constante entre o que queremos e o que devemos, entre o risco e a segurança, entre o agora e o futuro. Se a corda rompe em favor de um dos lados, não temos ninguém além de nós mesmos para responsabilizar.

Roger Federer aparentemente conquistou muito mais do que a maioria dos seres do planeta. Entretanto, durante os anos de árduo treino, ele certamente abdicou de momentos de vida que muitos de nós nunca iríamos prescindir. Divagando em suposições, e adaptando para a minha realidade, um atleta do nível de Federer não tomou os porres que tomei com meus amigos. Não ficou acordado de madrugada cantando numa roda de violão. Não passou o carnaval no interior de Minas, muito menos no Rio ou em Salvador. Não capotou de sono à tarde depois do almoço ao som da musiquinha do Vídeo Show. Não encheu a barriga de churrasco domingo sim, domingo não.

Criar uma relação de amor com a sua própria trajetória, listando as conquistas, mesmo que frugais, é o melhor antídoto para qualquer frustração originada por comparação com a vida alheia. Na revisão feita aos 30, ou em qualquer idade, o certo é comemorar o que se concretizou. E deixar o tempo desvendar o que ainda está por vir. Não adianta fantasiar sobre os relacionamentos amorosos dos outros e usar este parâmetro para avaliar os seus. Não adianta imitar os passos de alguém, se as pedras no seu caminho são outras. Não adianta ficar pedindo muita opinião, pois elas mascaram o seu instinto, que é a melhor bússola em uma tomada de decisão.

Existe uma teoria de que se você criar o hábito de afirmar para si mesmo que é feliz, em poucos dias você começa a realmente acreditar nisso. Para mim, a técnica é superficial demais. Eu não me deixaria enganar. Entretanto, decidi fazer uma pequena adaptação e comecei a me perguntar com regularidade por que eu sou feliz, em vez de simplesmente afirmar. Sugiro que você faça o mesmo. As respostas são as mais improváveis. E mostram que a verdadeira felicidade não está longe, nem nos outros. Está dentro. Basta procurar.

(Mas que a vida do Federer dá inveja, isso dá.)


Nota (adicionada em 3 de setembro de 2012):
Semanas depois de escrever e publicar o texto acima, li esta entrevista com Roger Federer, que confirma o grande empenho, dedicação e sacrifícios que teve que fazer para chegar aonde chegou. Interessante.



quarta-feira, 11 de julho de 2012

Os mesmos 27%

A Noruega é um país calmo. Nos cinco dias que passei por lá, não vi gente correndo pelas ruas, não vi trânsito engarrafado, não vi ponto de ônibus lotado. A Noruega tem um dos sistemas de organização social mais bem montados que já conheci. É um país pequeno, sim. Porém, se esta fosse a explicação, diversos outros países pequenos também seriam exemplos de qualidade de vida. E é preciso reconhecer: mesmo entre os países desenvolvidos, a Noruega é um caso raro.

Na Noruega, uma criança com deficiência não só tem direito de estudar em uma escola regular como recebe assistência integral de um tutor particular em sala de aula. Se necessário, consegue-se dois tutores particulares. Além disso, em cada comunidade há centros de bem-estar, em que pais de crianças especiais podem deixar seus filhos por algumas horas, para que eles – pais – possam realizar simples tarefas do dia a dia, como ler um pouco, ou ir ao supermercado. No centro de convivência, há uma equipe de pedagogos e terapeutas treinada para entreter a criança, estimulá-la e administrar medicamentos, se for o caso. Os jovens noruegueses com deficiência mental, aos 18 anos, ganham do governo uma casa, perto da residência dos pais, completamente adaptada para as suas necessidades. E contam com uma equipe de cuidadores que se revezam todos os dias para garantir sua segurança e bem-estar. Assim, os pais, que cuidaram daquela pessoa por quase duas décadas, têm uma chance de vivenciar um pouco da vida em seu trilho ordinário, em que filhos nascem, crescem e, quando adultos, saem de casa. Na Noruega, tudo isto é financiado com os mesmos 27% de impostos que se paga no Brasil. Estes serviços – e outros mais tradicionais, como uma boa rede de hospitais públicos, capaz não só de atender à demanda cotidiana, mas também de realizar pesquisas de longo prazo – são direitos garantidos a todo cidadão norueguês, seja ele deficiente ou não. As pessoas não precisam se preocupar: terão seus benefícios honrados sem gastar um centavo extra sequer.

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Meu cérebro gosta de coincidências. Ele também adora pesquisas que tentam desvendar porque o cérebro humano gosta das coisas. Tanto que, assim que meus olhos viram um livro chamado You Are Not So Smart (Você Não É Tão Esperto, ainda sem tradução para o Português), meu cérebro ficou berrando “Compra! Compra! Compra!”, já que o autor prometia comprovar teorias curiosíssimas como, por exemplo, a de que a maior parte da nossa memória é ficção, a de que não temos a menor ideia de quando estamos sendo influenciados pelos outros e a de que coincidências são meras obras do acaso, porém nosso cérebro insiste em inventar significados especiais.

Apesar de julgar alguns argumentos do livro frágeis, devo admitir que eu fiquei bastante entretido com o tom de deboche que o autor usa para desmontar crenças que carregamos sem questionamentos há gerações. Porém, não sei exatamente por que acabei interrompendo a leitura. Não levei o livro para a minha viagem de férias, em que visitaria, entre outros países, a Noruega.

Por mais descrente que o autor seja em coincidências, por mais que ele tente comprovar que todo significado particular é pura fabricação da nossa cuca (demasiado mística, esperançosa e romantizada), ele há de concordar que é uma incrível obra do acaso o fato de eu retornar da calma Noruega, desembarcar no caótico Brasil e retomar o livro justo em um capítulo que discorre sobre como o cérebro age no uso dos bens públicos. E sobre qual a razão para alguns sistemas públicos funcionarem e outros quebrarem.

De maneira sucinta, o capítulo explana a lógica de um experimento chamado O Jogo dos Bens Públicos, que funciona assim:

“Um grupo de pessoas se senta em volta de uma mesa, e cada um recebe alguns dólares (ou qualquer outra moeda). O grupo é avisado que cada um pode colocar quanto dinheiro desejar em um pote comunitário. Então, um pesquisador dobra o valor total do pote e todos recebem uma parcela igual de volta.

Se o grupo tem 10 pessoas e cada um recebe $2, e se todos depositam esta quantia no pote comunitário, o total será $20. Então, o pote é dobrado para $40 e dividido entre os 10 participantes. Cada um recebe de volta $4.

O jogo acontece em várias rodadas. E seria natural imaginar que todos colocariam o máximo de dinheiro no pote a cada rodada – mas não é isso que acontece. Geralmente alguém pega a lógica do jogo e percebe que pode depositar muito pouco no pote, ou até mesmo nada, e começar a ganhar mais dinheiro do que todos os outros.

Se todos os participantes, exceto um, depositam $2 no pote, a soma será $18. Então, o pesquisador dobra para $36 e todos recebem de volta $3,60 – inclusive o indivíduo que não colocou um centavo sequer no pote.

Em pesquisas em que este experimento é jogado de forma que todos possam ver quanto os outros estão depositando, o pote tende a crescer por um tempo, mas depois começa a definhar à medida que as pessoas arriscam segurar o próprio dinheiro. O comportamento logo se espalha, porque ninguém quer fazer papel de idiota, e eventualmente a economia para de funcionar. Se os participantes têm a opção de punir os trapaceiros, a fraude cessa e todos voltam a ganhar. Porém, se em vez da possibilidade de punição, os participantes ganham apenas a chance de recompensar os bons jogadores, a economia quebra novamente em poucas rodadas.

O curioso deste jogo é que é completamente ilógico parar de contribuir para o pote apenas porque alguém do grupo está tirando vantagem. Se todos os outros continuarem sendo bons cidadãos no jogo, todos ainda sairão ganhando. Entretanto, o lado emocional do cérebro entra em jogo quando você percebe um impostor. É uma reação nata, que foi muito útil para seus ancestrais. Lá no fundo, você sabe que os trapaceiros merecem ser punidos, porque basta um deles para a economia entrar em colapso. Você prefere perder o jogo inteiro a ajudar alguém que não está ajudando você.” 

Tradução livre de trecho do livro You Are Not So Smart, de David McRaney.

* * *

Ao terminar de ler o capítulo sobre O Jogo dos Bens Públicos, fiquei curioso para saber qual sistema de penalidade fez as coisas darem tão certo na Noruega. Passei um bom tempo também pensando que é exatamente a falta de punição que faz o nosso país degringolar: seja por quem fura a fila do cinema, seja por quem sonega os impostos de uma multinacional.

Desembarquei no Brasil com uma mistura de felicidade pelo clima agradável e pelo maravilhoso som da nossa língua em meus ouvidos, e desgosto pelo caos sem precedentes que encontrei logo no aeroporto, com policiais federais incapazes de realizar a passagem pela alfândega de forma organizada e demonstrando claro descaso com aquela multidão que chegava exausta de um voo de mais de 9 horas.

Quando encontrei meu filho, dei um abraço demorado, relembrando o quão distantes estamos da Noruega, não apenas geograficamente, mas principalmente em maneiras de garantir qualidade de vida para qualquer pessoa, quanto mais para pessoas com necessidades especiais. Voltei das férias com a certeza de que, no dia em que o Antonio nasceu, fui alistado compulsoriamente em uma guerra. Uma guerra que só me deixa duas saídas. Desistir de viver no Brasil. Ou lutar.

Não se preocupe, meu filho. O papai vai lutar.