terça-feira, 22 de maio de 2012

Terras estrangeiras



É impressionante a frequência com que nós associamos a criação de uma criança com deficiência com um mundo desconhecido, estrangeiro. Estou me preparando para sair de férias e, refletindo sobre a melhor maneira de me despedir deste blog por algumas semanas, notei a recorrência do uso da metáfora da viagem para um mundo diferente ao se falar de um filho com necessidades especiais. O sentimento de estar constantemente perdido, a dificuldade com a nova língua (novas palavras, novos termos), a busca desesperada por mapas e informações: sensações familiares, tanto para quem se aventurou em terras distantes, quando para quem, ao descobrir que seu filho tem alguma deficiência, as sentiu em seu coração.

Nos últimos 15 meses, minha mulher e eu nos mudamos para um país absolutamente remoto. Deserto como o meio do Canadá, frio como os rincões da Rússia: um lugar inóspito, especialmente para um casal que havia enfrentado pouca dificuldade na vida. Saímos em busca de ajuda por todos os lados, de mãos dadas, escorregando nas pedras molhadas, muitas vezes tremendo – de medo –, pois a missão de cuidar de um filho absolutamente diferente nos havia sido entregue.

Por sorte, encontramos muita ajuda. De alguns profissionais de saúde, de algumas outras famílias que também haviam sido jogadas naquele lugarejo como nós, mas o apoio mais significativo veio das pessoas que ficaram em casa: nossas famílias e nossos amigos. Pessoas que estão longe, no sentido de não terem passado pelos desafios que estamos enfrentando, mas que, por outro lado, estão absolutamente perto, no sentido de nos ajudarem a lapidar nossos caminhos.

A exposição franca da condição do Antonio – para a Ana e para mim, não havia outro jeito de lidar com a situação – gerou uma rede de proteção, de informação e principalmente de afeto em nossa volta, uma rede que está tomando proporções inimagináveis. Onde vamos com o Antonio, sentimo-nos acolhidos e compreendidos, sem os coitadismos e pieguices que muitas vezes dificultam o enfrentamento saudável dos problemas que surgem no dia a dia de um filho com deficiência.

A chegada do Antonio nos levou para uma terra estranha, sim. Mas agora, o conforto da adaptação já começa a dar as caras. A vida normal – tão sem graça, mas tão aconchegante – já faz parte de alguns dias das nossas semanas. E agora, que estou me preparando para ficar algum tempo em terras estrangeiras, para viajar no sentido literal, sem meu filho e sem minha mulher, o medo que surge em mim é outro: a saudade que vou sentir desta vida que aprendi a amar.


OBS: Por causa das minhas férias, este blog ficará sem atualizações até o dia 2 de julho. Irei para alguns lugares esquisitos por aí. E espero voltar cheio de histórias para contar.

Para compensar a ausência, deixo aqui dois textos bem famosos, escritos por pais de crianças com paralisia cerebral. Uma mostra de que a ligação de deficiências com países longíquos é bem comum. E uma excelente forma de imaginar o que é viver esta experiência.

Abraço a todos, até dia 2 de julho.

Fábio Ludwig



Bem-vindo à Holanda
Emily Perl Kinsley

Frequentemente sou solicitada a descrever a experiência de criar um filho portador de deficiência, para tentar ajudar as pessoas que nunca compartilharam dessa experiência única a entender, a imaginar como deve ser. É mais ou menos assim.

Quando você vai ter um bebê, é como planejar uma fabulosa viagem de férias – para a Itália. Você compra uma penca de guias de viagem e faz planos maravilhosos. O Coliseu. Davi, de Michelangelo. As gôndolas de Veneza. Você pode aprender algumas frases convenientes em italiano. É tudo muito empolgante.

Após meses de ansiosa expectativa, finalmente chega o dia. Você arruma suas malas e vai embora. Várias horas depois, o avião aterrissa. A comissária de bordo chega e diz: “Bem-vindos à Holanda”.

“Holanda?!? Você diz, “Como assim, Holanda? Eu escolhi a Itália. Toda a minha vida eu tenho sonhado em ir para a Itália.”

Mas houve uma mudança no plano de voo. Eles aterrissaram na Holanda e é lá que você deve ficar.

O mais importante é que eles não te levaram para um lugar horrível, repulsivo, imundo, cheio de pestilências, inanição e doenças. É apenas um lugar diferente.

Então você deve sair e comprar novos guias de viagem. E você deve aprender todo um novo idioma. E você vai conhecer todo um novo grupo de pessoas que você nunca teria conhecido.

É apenas um lugar diferente. Tem um ritmo mais lento do que a Itália, é menos vistoso que a Itália. Mas depois de você estar lá por um tempo e respirar fundo, você olha ao redor e começa a perceber que a Holanda tem moinhos de vento, a Holanda tem tulipas, a Holanda tem até Rembrandts.

Mas todo mundo que você conhece está ocupado indo e voltando da Itália, e todos se gabam de quão maravilhosos foram os momentos que eles tiveram lá. E toda sua vida você vai dizer “Sim, era para onde eu deveria ter ido. É o que eu tinha planejado.”

E a dor que isso causa não irá embora nunca, jamais, porque a perda desse sonho é uma perda extremamente significativa.

No entanto, se você passar sua vida de luto pelo fato de não ter chegado à Itália, você nunca estará livre para aproveitar as coisas muito especiais e absolutamente fascinantes da Holanda.



Meu pequeno búlgaro
Diogo Mainardi

"Eu achava que as palavras 
eram inofensivas. Para mim, o politicamente correto era folclore. Já não penso assim"

Diagnosticaram uma paralisia cerebral em meu filho de 7 meses. Vista de fora, uma notícia do gênero pode parecer desesperadora. De dentro, é muito diferente. Foi como se me tivessem dito que meu filho era búlgaro. Ou seja, nenhum desespero, só estupor. Se eu descobrisse que meu filho era búlgaro, minha primeira atitude seria consultar um almanaque em busca de informações sobre a Bulgária: produto interno bruto, principais rios, riquezas minerais. Depois tentaria aprender seus costumes e sua língua, a fim de poder me comunicar com ele. No caso da paralisia cerebral, fiz a mesma coisa. Passei catorze horas por dia diante do computador, fuçando o assunto na internet. Memorizei nomes. Armazenei dados. Conferi estatísticas. Pelo que entendi, a paralisia cerebral confunde os sinais que o cérebro envia aos músculos. Isso faz com que a criança tenha dificuldades para coordenar os movimentos. Meu filho tem uma leve paralisia cerebral de tipo espástico. Os músculos que deveriam alongar-se contraem-se. Algumas crianças ficam completamente paralisadas. Outras conseguem recuperar a funcionalidade. É incurável. Mas há maneiras de ajudar a criança a conquistar certa autonomia, por meio de cirurgias, remédios ou fisioterapia.

Um dia meu filho talvez reclame desta coluna, dizendo que tornei público seu problema. O fato é que a paralisia cerebral é pública. No sentido de que é impossível escondê-la. Na maioria das vezes, acarreta algum tipo de deficiência física, fazendo com que a criança seja marginalizada, estigmatizada. Eu sempre pertenci a maiorias. Pela primeira vez, faço parte de uma minoria. É uma mudança e tanto. Como membro da maioria, eu podia me vangloriar de meu suposto individualismo. Agora a brincadeira acabou. Assim que soube da paralisia cerebral de meu filho, busquei apoio da comunidade, entrando em tudo que é fórum da internet para ouvir o que outros pais em minha condição tinham a dizer sobre os efeitos colaterais do Baclofen ou sobre a eficácia de tratamentos menos ortodoxos, como a roupa de elásticos dos astronautas russos usada numa clínica polonesa.

A paralisia cerebral de meu filho também me fez compreender o peso das palavras. Eu achava que as palavras eram inofensivas, que não precisavam de explicações, de intermediações. Para mim, o politicamente correto era puro folclore americano. Já não penso assim. Paralisia cerebral é um termo que dá medo. É associado, por exemplo, ao retardamento mental. Eu não teria problemas se meu filho fosse retardado mental. Minha opinião sobre a inteligência humana é tão baixa que não vejo muita diferença entre uma pessoa e outra. Só que meu filho não é retardado. E acho que não iria gostar de ser tratado como tal.

Considero-me um escritor cômico. Nada mais cômico, para mim, do que uma esperança frustrada. Esperança frustrada no progresso social, na força do amor, nas descobertas da ciência. Sempre trabalhei com essa ótica anti-iluminista. Agora cultivo a patética esperança iluminista de que nos próximos anos a ciência invente algum remédio capaz de facilitar a vida de meu filho. E, se não inventar, paciência: passei a acreditar na força do amor. Amor por um pequeno búlgaro.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Dó ré mi marshmallow

Desde que descobrimos sobre a deleção do Antonio, conversamos pela internet com mães e pais do mundo inteiro que obtiveram um diagnóstico parecido para seus filhos. Foi num destes fóruns que uma amiga contou uma história inspiradora, que aconteceu na sala de aula do filho de um amigo dela. O exemplo é tão efetivo, que achei válido dividir por aqui também.

Quando Joey (um garoto com Síndrome de Down) começou o jardim de infância, sua mãe decidiu ir à escola e compartilhar com as crianças informações sobre seu filho. Ela leu um livro sobre Joey, escrito por ela mesmo, e depois organizou uma série de brincadeiras divertidas e instrutivas com a turma.

Primeiro, ela pediu que cada um colocasse luvas de cozinha nas mãos e depois tentasse fazer recortes e dobraduras com papel. As crianças adoraram, apesar de terem achado muito difícil. E a mãe explicou que era assim que Joey se sentia quando usava as próprias mãos. Em seguida, ela disse para cada um colocar um marsmallow na boca e cantar uma música. Eles caíram na gargalhada e também acharam muito difícil. Então ela explicou que este é o tamanho do esforço de Joey para usar sua boca também. Desde aquele dia, os colegas de Joey são os seus maiores incentivadores. E mesmo com suas limitações, ele é aceito e querido por todos na sala de aula.

A história chega a parecer boba de tão simples. Porém, é prova prática de uma teoria que venho solidificando em minha mente dia após dia: crianças que convivem com crianças com necessidades especiais tornam-se adultos mais tolerantes. É claro que elas precisam ser orientadas e ter suas dúvidas esclarecidas, senão o efeito pode ser o contrário e gerar ainda mais afastamento. Entretanto, não há dúvida de que a exposição às diferenças amplia sua visão de mundo e pode ser determinante para suas relações futuras.

De tempos em tempos circulam na internet textos de pais de crianças com necessidades especiais explicando como eles gostariam que os outros (adultos especialmente) agissem diante de seus filhos. Concordo com a maioria deles. São textos sinceros e corajosos, escritos após muita reflexão. Entretanto, não me sinto confortável com a ideia de sair replicando mandamentos para que eu me sinta menos constrangido ao sair com meu bebê. Prefiro deixar aqui uma dica mais natural (baseada somente em minha experiência pessoal).

Quando perceber uma criança com feições e reações diferentes, não se preocupe em disfarçar. Olhe com olhos de criança, tire suas dúvidas, sacie sua curiosidade. Pais que desejam um futuro melhor para seus filhos terão satisfação em responder. Quando a condição de saúde e as necessidades especiais da criança deixam de ser assuntos velados, fica bem mais fácil para todos agirem naturalmente. Garanto que em pouco tempo seus olhos deixam de dar atenção apenas à síndrome e começam a enxergar também a criança que existe ali, passam a ver um ser humano, com direito à vida, como qualquer outra pessoa.

É exatamente neste momento que o seu preconceito se quebra. E posso dizer, como um pai de uma criança especial, como alguém que vê as pessoas reformulando seus conceitos após conhecerem a história do Antonio: este é um momento muito gratificante de ver.


segunda-feira, 7 de maio de 2012

A importância das ervilhas

Quem prestou um mínimo de atenção às aulas de genética no ensino médio certamente se lembra dos experimentos de Mendel com suas ervilhas lisas e rugosas. É aquela aula em que os professores explicam o que é azão e o que é azinho, e logo depois todo mundo fica fazendo as contas para ver se poderá ter filhos com olhos azuis. Lembro de ter feito as minhas contas. E de ter chegado a uma conclusão importante: se tivesse um herdeiro com olhos da cor da piscina, deveria checar a íris do vizinho da frente, ou do padeiro da esquina, ou pior, do próprio limpador da piscina.

Prudente que sou, avesso a embaraços, achei por bem me casar com uma ragazza com olhar de cor indefinida. Os olhos da minha mulher têm aquele tom âmbar, que às vezes puxa pro mel, às vezes ganha um fundo esverdeado. São absolutamente lindos. Merecem ser passados para frente. Mas nessa indecisão cromática, ficou fácil para o par de jabuticabas míopes, porém dominantes, que carrego atrás dos óculos. O Antonio nasceu com olhos castanhos, puxados, caídos para baixo. Idênticos aos meus.

Não vou discorrer muito sobre o assunto, pois é motivo de certo sentimento de injustiça por parte da minha mulher, mas a verdade é que meu filho puxou não só os meus olhos, mas também a minha boca, os meus dentes, o meu riso meio japonês, o formato do rosto, o cabelo que nasce para o mesmo lado (com redemoinhos nos mesmos pontos), a alergia a poeira, o gosto por manga e o jeito de dormir. Há fotos de nós dois, tiradas com a mesma idade, que se diferenciam apenas pelas roupas e pelo envelhecimento do papel. Mini mim. Cópia Xerox. Cuspido e escarrado, como diz a expressão equivocada, mas popular.

As aulas de biologia, entretanto, são apenas uma pequena amostra. Os exemplos da cor dos olhos e da forma dos cabelos não são nem os mais interessantes, muito menos os mais representativos da importância da genética em nossas vidas. Não sou especialista em nada, mas desde o nascimento do Antonio, fui obrigado a pesquisar e abrir meus olhos para assuntos relevantes, como as células-tronco, ou a seleção de embriões para fertilização in vitro, esta última uma técnica que já começa a mudar o futuro ao implantar nas mães apenas embriões que não carregam genes responsáveis por algumas doenças hereditárias.

Para explicar de maneira grosseira o que houve com meu filho, todas as informações para nosso desenvolvimento estão em nossos cromossomos. E todas as nossas células têm 23 pares deles. Um dos cromossomos do Antonio, o de número 6, foi formado sem um pedaço grande (se o cromossomo 6 fosse uma régua com cerca 30 centímetros, o Antonio teria perdido toda a parte entre o centímetro 16,1 e o centímetro 22,32). Isto é um acidente que acontece de maneira aleatória, por razões que a ciência ainda não sabe explicar. A melhor hipótese é que o evento ocorra no momento em que o cromossomo do pai se junta com o da mãe, porém, as tecnologias disponíveis ainda são incapazes de provar esta teoria.

O pedaço do cromossomo que se perdeu na formação do Antonio levou embora cerca de 100 genes (dos bilhões que temos). Por se tratar de um caso raro, com poucas ocorrências relatadas no mundo, não há pesquisas consistentes que revelem por qual parte do desenvolvimento estes genes perdidos seriam responsáveis. Há uma relação com problemas nos rins em um estudo, há uma tendência à obesidade se confirmando em alguns casos, porém as informações disponíveis terminam por aí. O resto são dúvidas, amenizadas apenas por comparação com outras crianças com perdas genéticas similares, porém quase nunca idênticas.

Isto significa que a síndrome do Antonio não tem cura ou tratamento conhecido. Ele tem informações a menos em absolutamente todas as suas células, dos fios dos cabelos às unhas dos pés. Porém a natureza é sábia, e mesmo com algumas páginas arrancadas do manual de instruções, o corpo busca formar seus órgãos vitais de maneira compatível à vida, embora funcionem aos trancos e barrancos. É mais ou menos assim que estão o cérebro, o sistema nervoso, o metabolismo do meu bebê: funcionando como dá e quando dá. Há peças faltando por todo lugar. E infelizmente, são peças que ninguém sabe ainda como fabricar.

Por isso, ao ver uma criança com uma síndrome genética andando de um jeito estranho, ou falando apenas algumas palavras, é importante não sentir pena: a simples capacidade de sustentar o próprio corpo nas pernas ou de pronunciar alguns fonemas já são tarefas hercúleas, conquistadas com muito mais treino e esforço do que a maioria das pessoas pode imaginar. São horas, dias, anos de tentativas frustradas. Muitas vezes o cérebro precisa criar um caminho completamente novo para que o corpo aprenda e memorize algum movimento ou palavra. Quando há alguma evolução, qualquer uma, é preciso se orgulhar.

Não sei quais informações o meu filho deixou de receber. Não tenho a menor ideia do quanto esta perda pode comprometer o futuro dele. Tenho consciência de que teremos muitas dificuldades, porém estou disposto a ficar ao lado dele e dar todo o suporte, mesmo que ele estacione onde está. Sei que cada ganho será resultado de muito suor e, por isto mesmo, motivo de muita festa. Estou confiante na capacidade dele. Porque já percebi que, além da aparência, o Antonio puxou uma outra característica do pai: a vontade de melhorar.

Mendel estava certo. Ervilha rugosa gera ervilha rugosa. Nem os cabelos lisos do meu filho, bem diferentes dos meus encaracolados, deixam alguma dúvida. Somos totalmente feitos do mesmo DNA.