segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Perdas





Nessa semana, em parte por conta da impossibilidade de decorar tantas senhas e nomes de usuários, em parte por causa do meu analfabetismo digital, corro o risco de perder o domínio flizam.com. Por isso, este é possivelmente meu último post sem a indesejável extensão “blogspot” no nome do blog. Veja bem: possivelmente. Após algumas ligações internacionais para o provedor do domínio, seguida de algumas horas de recuperação de logins, passwords e atualização de cartões de crédito, acredito que o problema está resolvido, apesar de não ter recebido confirmação alguma.

Essa microscópica experiência, quando comparada a tudo de mais importante que pode acontecer na vida, trouxe de volta à minha mente uma verdade tão frequente, tão inegável, que perceber a sua existência chega a parecer clichê: temos uma propensão a dar o verdadeiro valor para as coisas apenas quando estamos prestes a perdê-las.

Por favor, perdoem-me por utilizar filosofia tão barata. A questão é que essa ideia se presta perfeitamente como abertura de um relato de outra experiência, que tive há cerca de vinte dias, esta certamente bem mais relevante do que minha caça a senhas perdidas na internet.

Todos os anos, de 18 a 25 de setembro, o Brasil celebra a Semana Nacional de Trânsito, com campanhas de conscientização para motoristas e uma agenda nacional para discutir os problemas relativos à segurança nas ruas e estradas. Neste ano, tive a oportunidade de participar da criação da campanha, com objetivo de ajudar a reduzir os acidentes de trânsito no País.

Independentemente da ideia criativa, pois basta assistir o comercial para entendê-la, o ponto importante desse trabalho foi ter histórias reais por trás desse comercial: a história das vítimas de acidentes de trânsito que aceitaram participar da campanha.

Para quem não trabalha em publicidade, a produção de um comercial pode parecer algo bastante confuso e impessoal. É preciso acertar iluminação, figurino, maquiagem, câmera, som, cenário, figuração, entre uma série de outros detalhes técnicos, que podem transformar uma simples cena de alguns segundos em um trabalho de muitas horas, envolvendo dezenas de pessoas.

Cheguei ao set de filmagem – um hospital de reabilitação para crianças com deficiência – por volta de oito da noite e encontrei o cenário típico: várias pessoas do staff andando de lá pra cá com equipamentos de vídeo, plugando cabos, ligando refletores, acertando trilhos para a câmera, medindo iluminação e fazendo tudo o que se faz antes de qualquer filmagem profissional.

Porém neste caso havia uma diferença. Em vez de atores tranquilos, sentados em suas cadeiras, esperando pelo chamado do diretor, desta vez encontrei famílias de três vítimas de acidentes de trânsito, olhando com alguma dúvida (e curiosidade) para toda aquela movimentação, sem ninguém ao lado que explicasse de maneira mais clara tudo o que estava acontecendo.

No momento que entrei no set, senti que havia uma tensão no local. Os nossos participantes eram pessoas com sequelas graves de acidentes. E por algum momento, senti que ninguém por ali havia conversado com eles da forma que eu gostaria que tivessem conversado comigo, caso eu tivesse topado levar o Antonio para um comercial, por exemplo. Pior que isso, senti que algumas pessoas evitavam olhar para eles, como se não quisessem ser indiscretos ao observar a evidente deficiência.

Aquela situação me incomodou profundamente. Precisava quebrar o gelo e estabelecer uma relação mais humana – e menos profissional – com aquelas pessoas. Imediatamente pedi para ser apresentado às famílias. Falei com eles um a um, contei que eu sou pai de uma criança com deficiência e que conheço de alguma forma o calvário deles em incontáveis sessões de fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional, entre outras terapias de reabilitação. Expliquei que fui um dos criadores da campanha e agradeci a coragem de exporem as suas histórias em prol de uma causa importante, que é reduzir os acidentes.

Em questão de minutos, percebi o clima mudar. Pouco a pouco, as famílias sentiram-se mais à vontade. E a equipe no set também. A situação ficou mais confortável para que eles pudessem compartilhar as suas histórias. Criamos vínculo. Apesar de meu filho não ser vítima de acidente, e sim ter nascido com uma síndrome genética, confesso que naquele momento me sentia mais parte daquelas famílias do que da equipe de profissionais que estava produzindo a campanha. Temos uma luta em comum por nossos direitos. Sofremos os mesmos tipos de preconceitos. Senti que estava junto dos “meus”. E tenho certeza de que a recíproca foi verdadeira.

O primeiro participante que conheci foi o João, um pai de família, de São Paulo. No dia do acidente, ele estava passeando de moto com a esposa, quando decidiu parar no acostamento de uma rua. De repente, um carro desgovernado surgiu do nada e bateu neles. João perdeu uma das pernas até a altura da coxa. A esposa dele foi jogada para longe e faleceu por falta de socorro. João hoje anda com prótese e trabalha para recuperar os movimentos do braço esquerdo, que também foi atingido.

Em seguida conheci a Wellen e sua família. A Wellen tem 22 anos e sofreu um acidente com 17. Estava no banco do passageiro, sem o cinto de segurança. O motorista sofreu apenas pequenos ferimentos. Wellen, por outro lado, foi jogada pra fora do carro e ficou em coma por dois anos. Depois de acordar, progrediu muito. Deixou de se alimentar por sonda e já consegue ingerir alimentos pastosos. Porém ainda não recuperou os movimentos do corpo e não se comunica pela fala. Aprendeu um sistema de comunicação por sinais dos olhos. E está batalhando para conseguir se comunicar por computador.

Por fim conheci a Andrea, uma garota de 29 anos que sofreu um acidente em 2010. Ela estava voltando de uma noite com as amigas. Ao buscar o carro na casa da amiga, chegou a ser convidada para dormir lá, mas recusou. Andrea não se lembra detalhadamente do que aconteceu, mas parece que bateu num carro, sem grandes consequências. Não se sabe exatamente porque, em vez de descer do carro e resolver o problema, Andrea fugiu da situação. Nesta fuga colidiu novamente, desta vez num poste, e com gravidade. Andrea também ficou em coma e hoje se movimenta com bastante dificuldade, com auxílio de andador. Também teve a fala e a visão afetadas.

Apesar dos imensos desafios que têm à frente e de obviamente ainda sofrerem muito ao relatarem suas histórias, todas as famílias que participaram da campanha mantêm uma postura de perseverança. O maior sinal de atitude positiva é ter objetivos de vida. E isso todos eles mostraram ter. João recusou a aposentaria a que tem direito e está treinando para participar de maratonas e campeonatos de futebol. Wellen está focada em conseguir se comunicar por computador para voltar a estudar direito, curso que interrompeu por causa do acidente. Andrea chegou a dizer na campanha que “não desiste nunca” e quer voltar a trabalhar.

Além de ter desenvolvido um inevitável afeto em tempo recorde por essas pessoas, fiquei imaginando o quanto eles devem ter passado a dar valor à vida que por pouco não perderam. Infelizmente os acidentes trouxeram mais consequências ruins do que boas. Mas é inegável que após esse tipo de experiência as pessoas mudam pra melhor. As perdas e ganhos tomam novas proporções. E é nisso que me identifico com eles. É nesse ponto que o Antonio me transformou.

Assim como João, Wellen e Andrea, eu sei o quanto o simples ato de andar é importante e difícil. Sinto diariamente na pele (na verdade, na coluna) as dificuldades do meu filho. Assim como os parentes de João, de Wellen e de Andrea, também sei como é passar por uma tragédia na família – tragédia não é a melhor palavra, mas é a que vou usar. Sei como é viver aquilo que ninguém quer viver. Experimentei na minha própria vida aquilo que chamamos de azar.

Olhando para trás, vejo que o que mais me tocou ao fazer essa campanha foi ver que mais do que perder uma perna, mais do que perder os movimentos, mais do que perder a fala, aquelas famílias perderam algo que só atrapalha as nossas vidas: a sensação de invulnerabilidade. E entendi que é por isso que me sinto como um deles. Porque foi exatamente isso que eu perdi, no instante em que vi meu filho nascer.

Se quiser conhecer, assista o making of e o filme da campanha aqui.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Chorume literário


Preocupado com o futuro e motivado por uma imortal esperança de organizar minha vida financeira de um jeito mais inteligente, decidi ler alguns livros de autoajuda sobre o tema.

Não assumo isso sem embaraço, já que autoajuda é aquela categoria que invariavelmente traz valores depreciativos ao seu leitor, seja ele um verdadeiro desesperado, seja ele apenas um curioso.

Assim como todo mundo, também sinto pena ao observar alguém tirando uma edição de “Como Fazer Amigos & Influenciar Pessoas” da prateleira. A mim, parece óbvio que a lição número 1 para se fazer um amigo deveria ser “não leia um livro cuja capa revele que você não tem nenhum.”

Porém, ao ter coragem de ler meus livros de autoajuda (juro que não são muitos) somente em ambientes privados, geralmente trancafiado no quarto, percebi algo bastante preocupante: precisar de ajuda é algo que envergonha as pessoas. E buscar ajuda – uma atitude louvável 100% das vezes – é visto, quase na mesma porcentagem, como fraqueza ou algo constrangedor.

Talvez o preconceito esteja em pagar por essa ajuda, já que um bom bate-papo com um amigo ou um familiar é um remédio largamente utilizado desde quando o homem parou de marretar mulheres na cabeça e começou a se comunicar. Porém, dentro de cada um de nós reside algum preconceito inexplicável com relação a ressarcir alguém ou adquirir algum produto que ofereça uma ajuda mais profissionalizada. Psicólogo é coisa de louco. Personal trainer é frescura de rico. Professor particular é pra burro. Site de namoro é pra quem não consegue comer ninguém. E a lista segue.

O problema é que, com medo de julgamento ou de virar chacota entre os amigos, ficamos em um limbo em que nem buscamos alguém que possa resolver a situação, nem adotamos uma atitude “faça você mesmo”, tão comum nos Estados Unidos, não por acaso, um dos países que mais cria best-sellers mundiais de autoajuda.

Independentemente das inúmeras promessas falsas estampadas nos títulos desses livros, e mesmo com a compreensível equiparação a chorume editorial – muitos, de fato, são terrivelmente escritos e traduzidos –, as imensas mesas sobre o tema na porta de cada livraria são um sinal inegável de algo importante: todos nós queremos algum tipo de ajuda. Na maioria das vezes, com soluções fáceis, sim. Muitas vezes amparados por teorias improváveis, sim. Cegos por ilusões e fantasias, sim. Mas queremos. E não há mal nenhum em pagar por ela, ainda mais se for um livro barato. Relaxe e goze. Se preciso, em 10 lições. 

Feita toda essa defesa, segue abaixo a lista de livros de autoajuda que pretendo escrever. Decidi seguir a primeira lição da minha atual leitura financeira: “faça seu dinheiro trabalhar por você”. Como bom publicitário, resolvi lançar essa campanha teaser, com custo zero, para ver se cola. Quem sabe alguém por aí se interesse por um dos títulos? Ou quem sabe um dia eu tome vergonha na cara e realmente arranje um bom tema para escrever.


  1. Como Prometer Textos para Segunda e Fazer com que as Pessoas Aceitem na Terça. Ou na Quarta.

  1. Crie Teses Semanais com Pensamentos Baseados em Nada

  1. Cozinha Criativa – Desculpas e Receitas para o Lanche da Meia-Noite

  1. 500 Coisas Mais Importantes do que Lavar a Louça

  1. Seja Feliz Dormindo – Lições Para Quem Ainda Não Tem Filhos

Aceitamos encomendas.


Dale Carnegie, autor de "Como Fazer Amigos & Influenciar Pessoas", pensando nos milhões que ganhou.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Banzo


Há alguns meses eu havia escrito sobre uma árvore que tinha ganhado de presente e sobre quanta vida e alegria ela tinha trazido para a nossa casa. Estranhamente, pouco depois de publicar o texto, a planta começou a definhar. O processo foi longo e sofrido. Com imensa tristeza, vimos as folhas começarem a queimar nas pontas, depois a secar e, por fim, assistimos a cada uma cair no chão. Os meses passavam e parecia que a árvore dava seus últimos suspiros. Com muito esforço, chegava a gerar brotos de novas folhas, mas por alguma razão desconhecida, por mais que se aguasse ou trocasse o vaso de lugar, algo simplesmente os impedia de vingar. Olhei para aqueles galhos secos e senti que era uma luta perdida. Imaginando que a nossa varanda não era o ambiente ideal para aquela espécie, comecei a considerar outras árvores para colocar em seu lugar.

Apesar do meu parco conhecimento botânico – e recentemente passei a assistir a um excelente programa na TV Cultura, “Um Pé de Que?”, para diminuir essa defasagem –, na hora me lembrei das pimenteiras e da crença de que elas murcham quando há mau-olhado em algum lugar. Afinal, se existe algo que irrita grande parte da população é alegria, felicidade e bom-humor, ainda mais quando motivados por coisas simplórias, como plantas ou sol, em vez de coisas mais importantes, como dinheiro. E de fato, àquela época, de mudança para uma casa nova com varanda e sem boletos de aluguel, eu provavelmente deveria parecer insuportavelmente contente aos olhos de quem estava tendo uma semana qualquer.

Superstições deixadas de lado, não comprei pimenteira, nem olho grego, nem espelhos para colocar na parede. Na verdade, em momento algum levei a sério a hipótese de que a árvore pudesse morrer por causa de inveja ou de energia negativa. Tendo a precisar de algo mais científico para me ater. E como toda casa sempre tem algo faltando ou algum conserto pendente, deixei outros assuntos ganharem prioridade antes de decidir o que fazer.

Um evento interessante que já deve ter sido amplamente estudado e descrito cientificamente é a capacidade humana de parar de prestar atenção em coisas que vemos todos os dias. Um exemplo clássico é quando dirigimos “no automático”. De tão acostumados com um caminho, quando percebemos, já estamos chegando ao destino e mal lembramos de termos percorrido as ruas anteriores. Eu, distraído por vocação, tenho praticamente uma cegueira para objetos rotineiros. Sou o típico sujeito que nunca encontra o abridor de latas na gaveta. Perco mais tempo procurando o carregador de celular do que de fato carregando a bateria. E, como era de se esperar, havia semanas que eu não observava a planta na varanda.

Foi por isso que ontem, no meio do jantar, tomei um susto ao perceber que a árvore estava repleta de folhas verdes e tinha quase o mesmo aspecto com que chegou para a gente. Minha mulher, com toda a naturalidade, lançou a sua teoria. “É assim mesmo. As folhas secam e depois nascem de novo.” É muito provável que ela tenha razão, mas confesso que essa tese de ciclo da planta me parece simplista e um tanto sem graça. Meu imaginário sugere que a árvore deva ter passado por um período de adaptação ao novo lar. Um “banzo” vegetal, aos moldes dos escravos africanos, que chegavam a adoecer e até a morrer de saudades da sua terra natal. 

Só o tempo dirá o que aconteceu. Se as folhas caírem novamente, voltaremos a varrê-las do chão, desta vez com a certeza de que logo tudo voltará ao normal. Se a árvore se mantiver cheia daqui por diante, ganha vida a minha hipótese, de que era preciso um tempo para ela se acostumar com a casa, para se sentir à vontade e voltar a respirar. E quanto à crença do mau-olhado, caso tenha existido algum, não tenho dúvidas de que acertamos no antídoto: simplesmente ignorar.


segunda-feira, 29 de julho de 2013

Para Cora


Há cerca duas semanas fomos avisados, por uma mensagem para o grupo de pais do qual fazemos parte, que uma criança americana com deleção no mesmo cromossomo que o Antonio – o cromossomo 6 – não resistiu às complicações da síndrome.

Não se pode dizer que ela tinha a mesma síndrome que o nosso filho. Deleções são partes apagadas do código genético. Se a criança nasce com um determinado pedaço apagado, as complicações podem ser problemas renais, respiratórios, entre outros. Porém, se o bebê nasce com outro pedaço perdido, embora do mesmo cromossomo, as questões de saúde podem ser completamente diversas, como problemas cardíacos, convulsões e assim por diante. Cada gene perdido é responsável pela formação de algum sistema diferente. E já que os genes apagados nas crianças raramente são coincidentes, pode-se dizer que a síndrome do Antonio (que não tem nome, é chamada apenas de Deleção do Cromossomo 6) dificilmente apresenta as mesmas conseqüências de saúde para as crianças ou o mesmo padrão de desenvolvimento. A única característica constante é o grave atraso motor e o retardo mental. As complicações de saúde – e sua gravidade – variam imensamente de criança para criança.

De toda maneira, a perda de uma criança com uma síndrome parecida, mesmo que minimamente, com a do meu filho, me comoveu de forma sem igual. Especialmente porque a mãe da menina relatou os últimos dias dessa luta, numa forma de compartilhar a dor, ou de refletir sobre tudo o que estava acontecendo. Não sei os motivos. Só sei que não foram dias fáceis para aquela família. Depois de inúmeras cirurgias sem grande sucesso e de incontáveis tentativas de tratamentos com medicamentos, foram avisados pelos médicos que não havia mais o que fazer para ajudar o coração da criança a funcionar. Ainda havia uma possibilidade de uma nova cirurgia, mas o bebê estava cansado, e teria poucas chances de sobrevivência. Os médicos dividiram que respeitariam qualquer decisão da família, mas emitiram a opinião que talvez o melhor fosse conviver com aquela criança da melhor maneira possível, pelo tempo que fosse possível. Por respeito à vida daquela pequena criança, talvez fosse a hora de parar de tentar salvá-la.

Não posso imaginar o quão difícil deve ter sido para esses pais tomar uma decisão tão dura. A bebê, chamada Cora, era a terceira de uma família completamente saudável. Sua irmã e irmão, poucos anos mais velhos, não viam a hora de voltar com a caçula para casa, quando seus pais tinham que pensar – sem perder a cabeça – na possibilidade de autorizar que aquele bebê nunca mais voltasse.

Com uma dor transmitida a cada frase, a mãe relatou que eles decidiram pela felicidade do bebê. Sentiam que sua filha estava cansada. Sentiam que haviam tentado de tudo. Decidiram tirar os tubos de respiração. Decidiram interromper a medicação. Decidiram deixá-la viver melhor, mesmo que isso fizesse o coraçãozinho dela parar.

Cora ainda sobreviveu 48 horas. Sorria sem parar. Trocava carinhos com a mãe. Recebeu visitas de inúmeros amigos da família. Cantaram “Three Little Birds” para ela. Ganhou últimos beijos dos irmãos. O relato deixou claro que foram momentos inesquecíveis. Vê-la sem enjoar por causa dos medicamentos. Vê-la bem, sorridente, brincando com as mãozinhas, mesmo que com o aviso dolorido dado pela sua respiração, cada vez mais curta e difícil.

Depois de muito lutar e de ganhar de presente dois dias de vida normal, Cora faleceu nos braços de sua mãe, numa noite tranquila, pouco depois da meia-noite, ouvindo cantigas, coberta de beijos e amor.

Na manhã seguinte à noite em que li esse relato, abracei meu filho longamente. E percebi que algo havia mudado em mim. Entendi, de forma mais clara do que nunca, o quanto tivemos sorte com o Antonio, mesmo nos dias mais difíceis. Relembrei os últimos meses e vi que todas as questões de saúde que passamos com ele sempre tiveram resultado positivo. Desde que ele nasceu, não perdemos uma batalha sequer.

Ao ver aquela família, igualmente dedicada, ter que tomar a difícil decisão perder o seu bebê, entendi que o bem-estar do meu filho não é somente resultado de bons cuidados ou do amor que temos por ele.

A vida – dele, minha, da nossa família – é um presente. 
E desde aquele dia, tenho procurado formas de agradecer.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Índice de felicidade


Deu no Estadão, em 26 de junho de 2013:

Um centro de estudos chamado Fundação Nova Economia, sediado em Londres, em parceria com uma organização ecologista chamada Amigos da Terra, criaram o Índice Planeta Feliz, calculado com base na sensação de bem-estar e na expectativa de vida dos cidadãos, além da eficiência ecológica do país.

Para minha surpresa, essa foi a lista dos 10 países mais felizes.

1º: Costa Rica
2º: Vietnã
3º: Colômbia
4º: Belize
5º: El Salvador
6º: Jamaica
7º: Panamá
8º: Nicarágua
9º: Venezuela
10º: Guatemala 

O Brasil aparece na 21ª posição entre 151 nações. Países desenvolvidos também não foram muito bem. O Reino Unido está 41º lugar, seguido por Japão (45º), Alemanha (46º), França (50º), Itália (51º), Canadá (65º), Estados Unidos (105º) e Rússia (122º).

* * *

Conclusões. Para ser feliz, é preciso: 

a) morar numa praia com água azul safira; 

Ou verde esmeralda. Ou tão transparente que você vê o fundo do mar a metros de profundidade. O importante é ter água. Se possível, ardente. Com gelo e um enfeite de guarda-chuva colorido. 

b) não sentir frio; 

Chega de molhar os pulsos antes de entrar no mar. Chega de abrir o chuveiro e pular pra fora do box até a água esquentar. Ser feliz é andar de camisa aberta. É dormir com ventilador na cara. É achar natural usar estampa de hibiscos. É ver a temperatura cair pra 27º C e chamar de inverno. 

c) saber dançar ritmos caribenhos; 

Veja bem: supõe-se que mesmo com praia e sol, é difícil ser feliz na solidão. E já que 9 entre os 10 países mais felizes se situam na América Central, ou no norte da América do Sul, é possível que a sua alma gêmea se encontre suada e rodopiante numa pista de dança similar ao inferno de Dante. Vá treinando suas cantadas em espanhol. Reveja a abertura de Rainha da Sucata. Porque se este estudo estiver certo, o casal mais feliz do mundo deve se vestir, se comportar e se mover como Gloria Estefan e Sidney Magal. 

d) ter uma raquete de matar mosquitos; 

Calor e umidade são o Viagra dos insetos. É só chover que não sobra ovo sobre ovo. Lagoa vira ópera. Poste de luz vira rave. E a gente vira buffet, para pernilongo aperitivar. Antes de tentar ser feliz nas proximidades da linha do equador, vale treinar uns saques e voleios na quadra de tênis. Você vai precisar. 

e) desconfiar de índices sobre felicidade. 

Em uma rápida busca na internet, o primeiro resultado foi uma matéria sobre outro estudo, dessa vez realizado por pesquisadores da World Gallup, uma organização que tem a intenção de investigar pensamentos e comportamentos da população mundial por meio de amostras representativas.

Entre 2005 e 2009, eles fizeram um levantamento em 155 países a fim de medir dois tipos de bem-estar.

Primeiro, eles pediram aos voluntários para analisar sobre a satisfação geral com suas vidas. E em seguida, fizeram perguntas sobre como cada sujeito se sentiu no dia anterior.

Segue o resultado dos 10 países mais felizes.

1º: Dinamarca
2º: Finlândia
3º: Noruega
4º: Suécia
5º: Holanda
6º: Costa Rica
7º: Nova Zelândia
8º: Canadá
9º: Israel
10º: Suíça

O Brasil aparece em 12º. E exceto a Costa Rica (destino que eu e você devemos considerar seriamente para as próximas férias), nenhum dos países da lista anterior apareceu nesta segunda. Isso somente comprova que felicidade é algo imensurável, incomparável e baseado em infinitas variáveis, todas sensíveis a fatores externos, como desastres naturais ou situação econômica. Tentar estabelecer uma métrica, seja financeira, seja psicológica, não passa de um embaralhamento de informações com resultados aleatórios. Tão confiáveis quanto uma carta de tarô ou uma bolinha na roleta.

Este é um daqueles casos em que compreender a situação macro é bem simples do que analisar um cenário micro. Se entendemos com facilidade que qualquer comparação entre a felicidade dos suecos e a dos guatemaltecas é mera questão de focar em um ou outro aspecto, por que temos tanta dificuldade – e por que damos tanto crédito – quando comparamos a nossa própria felicidade com a de pessoas que estão ao nosso redor? Passamos a vida nos equiparando uns aos outros e repetidamente nos sentimos frustrados, por maiores que sejam as nossas próprias conquistas. Por que não conseguimos compreender que é impossível ter o máximo em tudo? Por que não nos satisfazemos simplesmente com o que temos ou realizamos?

Também sofro desse mal. E não tenho a resposta para essas perguntas. Porém acredito que são mais felizes as pessoas que sabem definir o que amam. E sempre que conheço alguém interessante, dou um jeito de descobrir alguns dados nesse sentido. Tenho uma curiosidade especial pela comida que cada um mais gosta. Porém, em vez de perguntar “qual a sua comida preferida?”, geralmente lanço uma questão maior: qual seria a sua última refeição, se você pudesse escolher? Se tivesse no corredor da morte, o que pediria para servirem a você?

É interessante ver como essa mudança de perspectiva – a proximidade da morte e o tempero da “última vez” – faz as pessoas demorarem um pouco mais para responder. É mais interessante ainda ver que raramente as refeições escolhidas são pratos sofisticados ou inacessíveis. São receitas simples, que não precisamos estar na Dinamarca, nem na Costa Rica para comer.

Meu prato no corredor da morte – pode mudar ao longo do tempo – atualmente seria estrogonofe de frango, arroz branco, batata palha, uma Coca-Cola, um chope, um pudim de leite, um pouco de ambrosia e um café espresso. E assim percebo que posso ser imensamente feliz no almoço de amanhã. Sem segredos, sem pesquisas, sem muito dinheiro. É questão de querer.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Pais e filhos


“Meu filho vai ter nome de santo
Quero o nome mais bonito.” 

Um dos primeiros discos que ganhei na vida foi “As Quatro Estações”, da Legião Urbana. Tenho guardada na memória a cena em que eu tiro o vinil da sacola e fico olhando para a capa prateada, sem ter certeza do tipo de música que aquela banda tocava. Mal sabia eu que estava em frente a um dos presentes que eu mais aproveitaria, e que eu o ouviria centenas de vezes, e que ficaria horas lendo as letras (como era bom ter encartes com as letras!), até decorá-las todas. Tempos bons. Pelas minhas contas, desde aquela época já se vão quase cem estações. E hoje, depois de abandonar Brasília e de voltar para ela, depois de ser pai, depois de viver um pouco, vejo que letras de músicas como “Pais e Filhos” e “Há Tempos” continuam a falar profundamente com a minha alma, apesar dos anos. Talvez por isso assistir a Faroeste Caboclo no cinema e ir a um show em tributo a Renato Russo, como fiz há algumas semanas, tenham tido um gosto tão especial.

Nos últimos meses, a vida com o Antonio – e com a sua deficiência que tanto nos assustava – tomou um rumo de normalidade bastante inesperado, dadas as expectativas usuais de uma família com uma criança especial. Há dois anos, nem no mais otimista dos meus dias eu poderia imaginar que tão cedo estaríamos com as rédeas nas mãos e tocando o dia-a-dia com certa tranquilidade, apesar da imensidão de incertezas que ainda persiste em relação ao futuro dele. O fato é que estabilidade de saúde, de rotina e de sono pareciam utopias há não muito tempo. Por sorte não eram. Pouco a pouco, fomos encontrando os medicamentos, os alimentos e as terapias que nos livraram das frequentes e desgastantes visitas ao hospital. Hoje só temos o sono interrompido por uma virose ali, uma tosse aqui, nada fora do comum.

Só que todo ser humano vem com um defeito de fábrica e apresenta uma insistência em procurar sarna para se coçar. E já que o Antonio cresce, engorda e sorri, a neurose dos pais se volta quase completamente para o seu desenvolvimento cognitivo e motor, que é ascendente, porém lento, extremamente lento.

Criar uma criança que tem deficiência física e intelectual é, antes de tudo, um teste de paciência. Entendo perfeitamente quando me dizem que ter um filho especial é um presente. E é. Porém é um daqueles presentes que vêm com manual, dos grandes, sem figuras, e numa língua que você não consegue decifrar.

O maior desafio é decidir qual a melhor forma de ensinar a criança ou tratar um problema de saúde. E é importante entender que todas as soluções têm prós e contras. Escolher todos os caminhos reduz a chance de sucesso, pela falta de consistência. Escolher apenas um é como fazer uma aposta: pode dar certo, mas pode ser pura perda de tempo. A decisão natural passa necessariamente pela busca de mais informações com profissionais da área. Para nossa decepção, há sempre defensores e opositores de todo e qualquer método. Quase sempre temos profissionais da nossa confiança defendendo – com argumentos críveis e embasados – caminhos opostos sobre um mesmo tema.

Explico de forma mais prática. Com cerca de um ano de idade o Antonio começou a sustentar os braços no chão, como se quisesse engatinhar, porém não ficava de quatro, na posição do gato. Em vez disso, ficava com as pernas esticadas no chão, bem abertas, parecendo uma rã atropelada da cintura para baixo. Para ajudá-lo a manter as pernas mais fechadas, uma profissional da nossa extrema confiança sugeriu, na época, que amarrássemos um pano e volta das pernas dele, fazendo um “oito”, sem apertar, apenas para estabelecer um limite na abertura das pernas. Assim, quando o Antonio tentasse engatinhar, era mais provável que ele subisse o bumbum e ficasse com os joelhos no chão. Achamos a ideia excelente e seguimos a sugestão. Porém, ao comentar com outra profissional de igual confiança, ouvimos a sugestão oposta: que deixássemos o Antonio com as pernas livres, pois elas eram bastante ativas. E que fizéssemos uma série de brincadeiras e estímulos, mas sem amarras. Ela acreditava que o não engatinhar era uma questão neurológica, não física. E que o Antonio só ficaria na posição do gato quando o seu cérebro estivesse pronto, e não por causa da amarração.

Quando duas pessoas preparadas, confiáveis, embasadas por conhecimentos científicos e por anos de experiência, indicam caminhos excludentes, qual seguir? E quando a terceira opinião indica um terceiro caminho?

Onde guardar o medo de tomar a decisão errada? Como evitar o receio de ouvir de um profissional, daqui a alguns anos, que se você tivesse escolhido a outra terapia, o outro método, o outro medicamento, seu filho poderia estar melhor?

Pelo menos no caso do Antonio, esta é uma angústia que se repete em diversas esferas. Por exemplo, a consistência mais adequada da comida: em pedaços, para desenvolver os músculos da face e a mastigação, ou em consistência pastosa, para não correr risco aspirar alimento e ter complicações? O antibiótico que ele toma diariamente: devemos continuar, para mantê-lo longe de internações hospitalares, ou devemos descontinuar e procurar uma solução mais arriscada para as infecções urinárias, como uma cirurgia? A ressonância magnética que ele precisa fazer para sabermos se escuta direito: devemos fazer, e correr todos os riscos cardíacos e respiratórios envolvidos com uma anestesia geral, ou devemos não fazer, e possivelmente prejudicar o desenvolvimento dele por não usar um aparelho de audição?

As dúvidas apenas aumentam com relação ao desenvolvimento. Hoje o Antonio engatinha, mas do jeito dele, diferente das demais crianças. É melhor deixá-lo utilizar sua própria forma, mas conseguir exercer a função? Ou é melhor insistir (sabe-se lá por quanto tempo) que aprenda a forma certa, para que siga para as próximas fases com mais êxito e firmeza? O Antonio não leva nenhum alimento à boca (bolacha, pirulito, doces, nada), porém passa o dia inteiro mordendo brinquedos e os dedos. O quanto podemos insistir com um biscoito (e correr o risco de criar uma aversão) e o quanto devemos deixá-lo livre para explorar apenas o que gosta? E seguimos assim por diante, com as perguntas se multiplicando em progressão geométrica.

O consolo é que, para algumas dessas questões, quando menos se espera a resposta chega. Por muito tempo tive uma dúvida extremamente dolorida: será que meu filho sabe que eu sou o pai dele? As razões para duvidar eram muitas. Ele não estranhava ninguém, mal percebia quando eu saía de casa, não atendia quando eu chamava o seu nome. Até que um dia, sentindo coceiras no rosto por ter adotado um visual Osama Bin Laden, eu decidi tirar a barba, alvo preferido do Antonio, quando ele está no meu colo. Nunca vou me esquecer da confusão nos olhos dele quando tocou pela primeira vez no meu rosto liso. Ele afastou as mãos imediatamente e ficou me examinando, tentando entender o que tinha acontecido. Ele fez mais uma tentativa e novamente retirou as mãozinhas, como se sentisse gastura com a nova textura da minha pele. A voz era a mesma, mas a imagem não era. E naquela noite, ele não se divertiu comigo da mesma forma que nos outros dias. O pai dele tinha barba. Logo, eu podia ser parecido, mas provavelmente não era o pai dele.

Em poucos dias, a barba voltou, assim como as puxadas e unhadas do meu filho. O pai finalmente estava de volta, do jeito que ele reconhece. Como falei, o Antonio está progredindo. Hoje ele vem a mim engatinhando quando eu o chamo. Estica os braços para que eu o pegue no colo. Às vezes toca na minha barba quando estou com ele de madrugada, e tenho certeza que é assim que ele identifica que sou eu, e não outra pessoa. Sei que nada disso parece excepcional para uma criança. Parecem detalhes sem importância. Mas depois de meses (anos, na verdade) esperando por esses sinais, cada gesto é uma emoção inesquecível.

Não tenho a menor ideia se um dia vou ouvi-lo me chamar de pai. Não tenho controle algum do que ele aprende ou deixa de aprender. Não sei o quanto o Antonio compreende do mundo. Mas cada vez que ele passa a fazer algo que tentamos ensiná-lo incontáveis vezes, cada vez que ele dá um retorno aos nossos insistentes estímulos, eu sou tomado por uma satisfação tão grande, que faz todo o esforço valer.

Outro dia um vizinho comentou comigo: “deve ser interessante acompanhar o desenvolvimento dele, né? Porque às vezes o meu filho pode levar umas duas horas para aprender algo, enquanto o seu pode levar muito mais, talvez semanas. Deve ser emocionante ver o Antonio aprendendo as coisas.”

Fiquei algum tempo pensando que minha vida seria bem mais fácil se o Antonio aprendesse tudo mais rápido. Gentil, o meu vizinho quis ressaltar um ponto de vista positivo com relação à deficiência do Antonio. Apesar das dificuldades, é como se eu tivesse o privilégio de assistir a cada instante em câmera lenta. E por um lado, meu vizinho tem razão. Criar o Antonio é ver a mágica acontecer quadro a quadro, com longas pausas entre cada uma delas. Minha única dúvida é se isso é algo bom ou ruim. Não tenho certeza se viver essa experiência me faz mais ou menos feliz do que um pai de uma criança com desenvolvimento regular. Na verdade, cada vez que o Antonio estica os braços para mim, ele me lembra que este tipo de comparação com outras famílias já não faz mais sentido. Ele me ama, mesmo que tenha que esperar minha barba crescer. Eu o amo, mesmo que tenha que esperar para ele aprender. Como bem cantou Renato Russo, temos nosso próprio tempo.



terça-feira, 19 de março de 2013

Rainha das invenções


Qualquer mente com as sinapses em ordem, ao refletir sobre a evolução tecnológica do mundo, rapidamente chega à conclusão de que a preguiça é a maior inventora de todos os tempos. Foi a preguiça de andar quem inventou a roda. Foi a preguiça de subir degraus quem inventou o elevador. Foi a preguiça de lavar panelas quem inventou o micro-ondas. E, apesar de alguns militares e estudantes ficarem com os créditos, foi a preguiça de encontrar as pessoas quem inventou a internet e esse fenômeno amorfo que recentemente tomou contas das nossas vidas: as redes sociais.

Afinal, convenhamos: relacionar-se no mundo real com outras pessoas dá muito trabalho. Tem que se vestir adequadamente, deslocar-se até o local combinado, chegar na hora marcada, cumprimentar com um, ou dois, ou três beijos, em alguns casos apenas com um aperto de mãos, em outros somente com um sinal da cabeça. Tem que rir quando alguém diz algo supostamente engraçado. Tem que ouvir as opiniões alheias, e mais, tem que fingir interesse. Não pode coçar praticamente nenhum lugar que coce no corpo, não pode limpar o nariz, não pode comer de boca aberta, nem dormir se o assunto está entediante. Manter uma vida social exige uma renúncia quase absoluta de tudo o que verdadeiramente somos, e que deixamos à mostra apenas quando estamos trancados em um lugar seguro, como a própria casa, ou o banheiro.

Ainda assim, mesmo sendo muito mais fácil fazer reuniões pela internet, com camisa de botões da cintura para cima, e cuecas samba-canção e meias sujas da cintura para baixo (e com a escova de dentes ainda intocada), nosso eu-social, ainda habituado a outros tempos, insiste em rever as pessoas mais íntimas de quando em quando, mais por nostalgia do que para colocar o papo em dia.

Mas para isso são precisos heróis da resistência. Eu mesmo estou há sessenta dias tentando organizar um pôquer com cinco camaradas na minha nova residência e acho que nunca antes fracassei com tanto êxito. É preciso admitir que nos primeiros meses minha casa não dispunha do aparato mínimo nem para uma rodada decente de jogo do palitinho, muito menos para o nosso tradicional, embora raro, Texas Hold’em: eu não tinha mesa. Porém, uma vez solucionada esta questão, meus amigos e eu nos deparamos com outro impeditivo comum da vida moderna, muito mais eficiente do que as antigas desculpas, como a distância ou a falta de dinheiro para sair: a incompatibilidade de agendas. Nas últimas semanas, já adiamos o jogo por causa de aniversários, de viagens para o exterior, de ter que participar de uma corrida de rua, de ter que trabalhar no final de semana e até por causa da abstinência etílica de um dos participantes, que voltaria a beber somente dali a alguns dias e, por isso, preferia deixar o carteado para o domingo seguinte. Não preciso nem mencionar que o tal participante já está completamente livre para entrar em coma alcoólico, se assim o desejar, mas o jogo de pôquer é o único que não consegue sair do lugar.

Encontrar com os amigos está pior do que marcar consulta em médico pelo plano de saúde. Daqui a pouco vamos ter que mandar um save the date com um mês de antecedência pra combinar um chope. E a operação não será simples. Tem que mandar mensagem por celular, por e-mail, postar em todas as redes sociais e ainda confirmar por telefone no dia. Apostar em apenas um meio de comunicação é muito arriscado. Vai que o amigo é da TIM. As chances são grandes de acabar sozinho na mesa do bar.

Entretanto, depois de superados todos os desafios, depois de estarmos todos sentados  numa mesa agradável, com uma cerveja gelada na mão e um full hand na outra, todo o esforço parece valer a pena. Voltamos às mesmas gargalhadas, ressuscitamos as antigas piadas, desenterramos os apelidos, repetimos as mesmas ofensas inofensivas e naquela catarse feliz, onde o bullying rola solto para todos os lados, prometemos a nós mesmos que precisamos repetir isso mais vezes, como nos velhos tempos. “Todas as quintas!” – sugere um. “Melhor na quarta.” – retruca outro. “No próximo sábado, ou domingo, sem falta.” – compromete-se a maioria.

Mas vem a semana, e o trabalho, e os filhos, e o supermercado, e o pneu furado, e o condomínio atrasado, e os compromissos, que passam como um rolo compressor por cima de qualquer alma mais entusiasmada, e quando finalmente chega o próximo sábado, ou domingo, a única que comparece ao encontro é a preguiça. Essa rainha das invenções, muito solícita, não se importa em criar uma desculpa diferente para cada um, todas rapidamente enviadas por mensagens de celular, e-mails e avisos de redes sociais – invenções de autoria dela também, é claro. “Quem sabe no fim de semana que vem?” – insiste um mais otimista. “Fechado!” – responde alguém, sem muito compromisso, sabendo que não será cobrado. Desligo a TV pelo controle remoto, a obra-prima da preguiça, e penso comigo mesmo: melhor assim, o dia está perfeito para dormir.


segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

O segundo

Filho, 

Está chegando o seu segundo aniversário. Dia 6. E como eu fiz no primeiro ano, quero deixar um registro para você. Será que um dia você será capaz de ler? Será que um dia você conseguirá entender algo disso tudo, compreender ao menos um pouco do que escrevo? Não sei.

O que eu sei é que você – nossa família – está bem mais adiante do que imaginamos. E, ao mesmo tempo, bem atrás também. Não faz sentido, eu sei, mas é isso mesmo. A esperança nos puxa pra frente, a expectativa nos puxa para trás. A paciência nos faz andar, a ansiedade nos dá um tombo. É assim todos os dias, em todos os momentos com você. Na hora de comer, de brincar, de tentar ensinar algo de novo. Eu, sua mãe, o mundo, sempre querendo mais. E você exigindo calma. Impondo o seu ritmo. Decidindo por conta própria quando está pronto para aprender.

Sabe, meu filho, quando você ainda morava dentro da barriga da sua mãe, eu tinha uma imagem, uma cena, que sempre voltava à minha mente. Eu imaginava você com cerca dois anos entrando no meu quarto logo de manhã. Você tinha os cabelos encaracolados, claros, como foram os meus, e vinha andando só de fralda, camiseta e chupeta, com cara de sono, até a porta do quarto. Não sei por quê, sonhei de olhos abertos com essa cena muitas e muitas vezes. Você ali parado, em pé, coçando os olhos de sono, me chamado pra brincar.

Errei o palpite. Seu cabelo é mais escuro, mais curto, mais liso. Você não dá muita bola para chupeta, faz meses que não pega numa. Dorme de calças. Não acorda muito cedo. E, principalmente, não vem andando para o meu quarto. A verdade é que você é um imprevisto, meu filho. Uma surpresa. E como num filme muito bom, com viradas inesperadas, cortou da edição a minha cena clichê.

As imagens das nossas manhãs são outras. Às vezes, nos fins de semana, acordo mais tarde e encontro você ainda de pijamas no seu tatame da sala, explorando os seus brinquedos, geralmente com a língua, ou vendo TV. Quando chego perto, ganho um sorriso de olhos apertados e, na falta de um quimono para segurar, você me dá um agarrão na barba, às vezes complementado por uma babada em alguma área do rosto. Revido o golpe imediatamente. Ataco direto naquela área do pescoço logo abaixo da orelha, cafungando e fazendo cócegas, e você se encolhe dando risadas, puxando ainda mais a minha barba, mas resisto na minha posição, até vencer. É o nosso bom dia mais tradicional. Depois do embate, corro direto para a cafeteira. E você se volta novamente para o clipe infantil na televisão, concentrado mais na bolinha que pula por cima das letras do que nas imagens do vídeo.

Outra cena clássica é buscá-lo no berço, após ser avisado por seus grunhidos de que você está acordado. Encontro você sentado, as pernas esticadas, tentando manter o equilíbrio, um exercício difícil por si só em qualquer momento do dia, ainda mais com sono. Seu corpo ainda não aprendeu o tradicional gesto de pedir colo, meu filho. Você não estica os braços quando nos vê, porque ainda precisa deles apoiados para ficar sentado. Porém, como sempre, inventou seu jeito de se fazer entender. Quando chego perto, recebo o infalível sorriso e, rapidamente, você eleva os braços só até a altura dos ombros, com os cotovelos encolhidos, perdendo completamente o sustento que mantém o seu tronco em pé. Em outras palavras, se eu não pegá-lo, ou você cai pra frente, ou cai para trás. É como um jogo da confiança matinal. E você confia.

Mas a minha cena preferida é quando a sua mãe faz a gentileza de se levantar para buscá-lo no berço. Ela coloca você entre a gente na cama, pois às vezes o seu horário ainda é bastante cedo para adultos acima de dois anos. Sinto o seu corpo rolar até o meu, mas finjo que continuo dormindo. De olhos fechados, tomo um puxão na minha barba, um chute de calcanhar na barriga, seguido de outro nas costelas, outro ainda mais forte na barriga de novo e, em manhãs de azar, sou agraciado com um último chute nas partes baixas. Aguento firme. Por piedade, sua mãe puxa você para perto do corpo dela. Por algum tempo, você finge que desiste. Até que, de repente, tomo uma nova martelada de calcanhar, dessa vez no baço, ou no pâncreas, seguida por uma mão se enfiando no meu nariz, ou no ouvido, ou alguns dedos babados passando pelo meu rosto. Sei que não posso abrir os olhos, pois assim serei vencido. Sei que preciso aguentar em silêncio, senão será a minha derrota. Sofro mais uma coronhada de calcanhar na bacia. Outra na boca do estômago. E não consigo me segurar. Receio levar uma batida no rosto. Ou na nuca. Você está ficando incrivelmente forte. Melhor não arriscar. Então, após alguns minutos de inútil resistência, abro os olhos. Você arregala os seus e sorri – o seu golpe de mestre. Naquele instante, tenho a certeza de que fui rendido. Sei que terei que levantar e brincar, não importa que horas sejam. Lutei, mas perdi. Jogo a toalha. Não sem antes fazer uma boa dose de cócegas, pego você no colo e me encaminho para a sala. Coloco você no chão, ligo a TV e começo a distribuir os seus brinquedos em nossa volta. Ainda meio zonzo por causa do sono, deito numa almofada, assistindo você sacudir um chocalho, ou apertar um botão de um brinquedo com a cabeça, ou brincar com uma mola de caderno. E percebo que esta é exatamente a cena que eu sempre quis.

Obrigado por me acordar para a vida, meu filho.
Parabéns pelos seus 2 anos. Que seja um ano muito feliz. 

Papai


segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Caça-palavras


Outro dia estava escrevendo um parágrafo sobre o brasileiro. E como se não tivesse um caminhão de coisas para fazer, fiquei algum tempo pensando que havia algo de errado com aquela palavra: brasileiro. O problema não são os nascidos no Brasil, longe disso. É o “eiro” que soava estranho. Porque, em português, quando se quer indicar a nacionalidade de uma pessoa, os sufixos mais comuns são “ano”, “eno”, “ino”, como em angolano, chileno, argentino. Há ainda o “ês”, de chinês; o “ão”, de afegão; o “ense”, de canadense”; e até o esquisito “ol”, de espanhol. Outros termos mais específicos, como belga, austríaco e paraguaio, também aparecem de vez em quando, porém com “eiro” até agora só encontrei sentidos que indicam um hábito ou estilo de vida. Na nossa língua, “eiro” é mais um jeito de ser do que um país de origem. José é pagodeiro. Miguel é baderneiro. Francisco é marinheiro. E sabe o Joaquim, aquele navegante boa vida, que passava anos deste lado do oceano enchendo o barco de pau-brasil, a pança de tapioca e a cama de índias? Era chamado de brasileiro.

Não sou sociólogo, nem historiador, mas minha cabeça é afeita a este tipo de devaneio. O peso das palavras. O que cada termo realmente quer dizer, e com qual intensidade. Esta é uma ciência negligenciada na correria do dia-a-dia e até invisível aos ouvidos menos atentos. Entretanto pode ser fatal no dizer, no sentir e principalmente no escrever.

Há algumas semanas, em um grande evento sobre os direitos das pessoas com deficiência, a presidente (este texto não permite o “denta”) Dilma Rousseff cometeu a gafe de pronunciar em seu discurso o obsoleto termo “portador” de deficiência. Recebeu em troca uma enorme vaia do público presente, a quem tentava – sem sucesso – transmitir o seu compromisso com a causa. Imagino o constrangimento da presidente e o desespero do assistente que redigiu o texto. E o pior: deve ter sido aquele desespero de quem não sabe qual foi o seu crime.

Para explicar de maneira didática, a palavra “portador” é mais indicada para quem está carregando algo portável, ou seja, algo que possa ser levado de um lado para o outro e que, pela lógica, possa deixar de ser portado em algum momento. Um policial pode portar uma arma durante o dia. E pode deixar de portá-la à noite. Um navio pode portar um avião em alto mar. E depois deixar de portá-lo, quando a aeronave decolar. Agora pense bem. Como uma pessoa pode portar uma deficiência, se no fim do dia ela não pode se desfazer desta característica? A deficiência, seja ela qual for, faz parte da pessoa. Não é algo que ela carrega de lá pra cá, como se tivesse feito uma opção. Isto vale mesmo para deficiências com chances de reversão, como um paraplégico que pode voltar a andar. Mesmo que recupere os movimentos, a pessoa não portou nada durante tempo algum. São os mesmos membros, antes paralisados, que agora voltaram a exercer suas funções motoras.

Em todos os casos, é mais prático e certeiro usar o termo “deficiente”, com o simples e usual “ente”, tão bem aceito em outras palavras, como inteligente, fluente ou paciente. Se por acaso a palavra lhe parecer pesada ou depreciativa, tenha certeza que é efeito da falta de uso, dos floreios eufemísticos ou de neologismos desnecessários da nossa língua. Para não haver dúvidas, alguém sem uma perna é deficiente físico. Alguém com diferenças cognitivas é deficiente intelectual. Cego é sinônimo de deficiente visual. Surdo é o mesmo que deficiente auditivo. Alguém com mais de um destes exemplos é deficiente múltiplo. E todos são pessoas com deficiência, ou apenas deficientes, o que não os faz melhor ou pior do que ninguém, simplesmente únicos, diferentes, com características específicas, como todo ser humano. No Brasil, somam 45,6 milhões de pessoas. Quase ¼ da população.

“Pessoa normal”, “retardado mental”, “necessidade especial”. O dicionário polêmico sobre o assunto é imenso. E nem sempre há consenso sobre quais os termos mais adequados. O que há, como em qualquer outro assunto, é uma convenção estipulada com base no pensamento vigente da época. Bobagem? Nem tanto. Leia uma revista feminina de quarenta anos atrás. Leia uma notícia de jornal do início do século passado. Leia a bíblia. Os tempos mudam e a linguagem muda junto. O que era permitido outro dia, hoje pode ser inaceitável. O que todo mundo dizia ontem pode ser crime amanhã.

Sim, o politicamente correto é chato e hipócrita. Não, as pessoas não deixarão de fazer piadas ou de dizer o que quiserem. Porém, ter um parâmetro do que é culturalmente ético e do que é legalmente proibido é fundamental para a nossa evolução, como indivíduos e como nação. Conhecer e ter costume de usar os termos adequados é mandatório. Promover uma caçada às palavras que perderam o seu lugar na nossa linguagem é imporante. Assim o pobre redator da gafe da Dilma ao menos sabe o erro que cometeu. Assim os humoristas têm ao menos noção de quando estão infringindo uma lei. Assim você pode escolher as suas palavras de forma consciente, o que ajuda muito em todas as situações, seja para discutir o relacionamento, seja para sustentar uma tese de mestrado.

Ontem almocei com familiares que voltavam de férias no nordeste. Um deles me contou que foi ao banheiro em um bar de praia e, quando chegou lá, foi surpreendido pelo que viu. Na porta do feminino estava escrito “buceta”, “periquita”, “perseguida”, “caverna”, “xana” e mais dezenas de nomes para “vagina”. Na porta do masculino, tinha “piroca”, “cacete”, “pinto”, “bilau”, “jeba” e outros incontáveis termos populares para “pênis”. É uma pena que ele não tirou uma foto. Teria sido a imagem deste texto. Porque prova que nós brasileiros, quando temos interesse por um assunto, não temos deficiência alguma de vocabulário. E que sempre encontramos a palavra certa a dizer.


terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Don e Lya


“As pessoas têm um desespero tão grande para que alguém diga a elas o que fazer, que elas aceitarão qualquer coisa.” - Don Draper, publicitário

Don Draper foi um dos profissionais de propaganda mais bem sucedidos na Nova Iorque dos anos 60. Inteligente, criativo e extremamente observador, criou slogans históricos como o “It’s toasted!”, dos cigarros Lucky Strike, quando a indústria de tabaco não tinha mais nada a dizer para diferenciar uma marca da outra. Quem fumaria um cigarro cujo único apelo é ser tostado? – perguntariam os mais céticos. Quem usaria uma marca cujo maior argumento é “Just do it”? – pergunto eu a você.

Infelizmente Don Draper, por mais genial que tenha sido, é apenas um personagem de uma série americana de televisão chamada Mad Men. Homem fictício, porém sábio. Entendeu rapidamente que a maioria das pessoas deseja ser comandada, em vez de comandar. Deseja seguir, em vez de liderar. Deseja ser informada, por alguém confiável – muitas vezes pelo simples fato de ser famoso –, sobre o que é bonito e o que é feio. Sobre o que é in e o que é out. Sobre o que é mais inteligente. Sobre o que é mais moderno. Sobre o que é mais elegante. E principalmente sobre o que é correto e o que é errado.

É por isso que nós publicitários utilizamos a figura da Ana Maria Braga para anunciar as ofertas do Carrefour, embora a apresentadora provavelmente não faça suas compras lá, nem tenha ideia do preço do quilo da cebola. É por isso que um político pouco conhecido sempre anda de braços dados com outro já bastante popular, numa manobra antiga, porém eficiente, para herdar a confiança da população, mesmo sem ter experiência, plano de governo ou capacidade para a gestão pública. É por isso que jornais e revistas convidam para colunistas pessoas cujas ideias já conquistaram um público cativo e cujo nome já seja associado ao pretensioso termo formador de opinião.

Que me desculpem as ovelhas que confiam cegamente no julgamento de padres, professores, médicos, jornalistas. Que me preguem numa cruz os fervorosos admiradores de Arnaldo Jabor, José Dirceu, Glória Kalil ou de qualquer outra pessoa que expresse um ponto de vista – sempre pessoal, é importante ressaltar – sobre qualquer assunto. Na minha humilde opinião, todo indivíduo deve ser formador de opinião. Com base em muita informação e em seus valores pessoais, todo ser humano deve tomar posse do direito de formar a sua própria opinião.

Na última semana estourou na internet uma polêmica sobre a coluna de Lya Luft, "O ano das criancinhas mortas", publicada na revista Veja, edição de 31 de dezembro de 2012. A escritora, espantada e revoltada com um novo massacre ocorrido em uma escola dos Estados Unidos, fez uma ressalva de que não poderia falar com propriedade sobre o assunto (alguém pode?), mas mesmo assim, decidiu emitir seu ponto de vista, pois há temas sobre os quais não se pode calar.

De maneira sucinta, Lya construiu o raciocínio de que crimes de tal desumanidade só poderiam ser cometidos por doentes mentais. E fez uma ligação perigosa entre tais crimes e a inclusão escolar de pessoas com deficiência intelectual. Confundiu deficiência com doença. E expressou a opinião de que a inclusão, forçada, gera uma necessidade de adaptação que pode estar acima dos limites das pessoas com deficiência e que pode torná-las infelizes e perigosas.

Como pai de uma criança especial, entendo o que a autora quis dizer. Consigo imaginar crianças com deficiência sendo alvo de piadas e brincadeiras de mau gosto nas escolas. É inevitável. E não acho que ser a chacota da sala ajude ninguém a se desenvolver.

Por outro lado, se a inclusão for efetiva, consigo imaginar turmas verdadeiramente heterogêneas, em que os alunos possam conviver com as diferenças e aprender a respeitá-las, não só no ambiente escolar, mas na vida. Consigo imaginar escolas com estrutura múltipla e com métodos de ensino mais abrangentes, mais focados no potencial de cada um, menos embasados em cartilhas. Tenho certeza de que será um desafio ensinar matemática para crianças com ritmos e capacidades diferentes de aprendizado, mas, se paramos para pensar, este desafio já existe mesmo sem a inclusão de crianças com deficiência intelectual nas escolas regulares de hoje em dia.

Entendo que meu filho não tenha a mesma condição de acompanhar o conteúdo programático utilizado atualmente pelo sistema escolar, mas não vejo por que ele deva estar separado na hora do lanche, na hora das brincadeiras, na hora de assistir a um filme, na aula de música, de pintura, na hora de esperar os pais na saída. Não aceito que as escolas possam se isentar da responsabilidade de ajudá-lo a aprender, sendo que a educação é um direito garantido por lei a toda criança, seja deficiente ou não. E mais: a convivência com as diferenças é benéfica para todos, tanto para alunos com deficiência física, intelectual ou múltipla, quanto para estudantes sem estas condições, professores e pais. Torna-nos mais humanos, mais tolerantes, mais pacíficos e mais preparados para a vida.

O tropeço de Lya Luft foi escrever uma opinião antipopular e pouco fundamentada, sobre um assunto delicado e complexo, em uma publicação de enorme abrangência. Para mim, isto não invalida a credibilidade da autora. É humana, como todos nós, passível a erros e capaz de admiti-los e consertá-los. A polêmica é até proveitosa, pois leva o assunto a pessoas que dificilmente seriam alcançadas se o texto não tivesse gerado controvérsias. Ouso apenas sugerir que você não siga irrestritamente a opinião de ninguém: nem de Lya Luft, nem dos que a estão apedrejando. Construa a sua. É mais seguro. Senão daqui a pouco Don Draper convoca a escritora pra falar do irresistível sabor da nova Doriana. E você fará o que ela mandar, sem nem perceber.


Caso queira ler o texto de Lya Luft e algumas das réplicas geradas, o site Inclusive fez um ótimo apanhado. Confira aqui.