segunda-feira, 30 de abril de 2012

Tinta escura


Pintura de Iberê Camargo
Há três dias o Antonio só ri. Tivemos uma semana difícil, escapamos por pouco de mais uma internação, com febres dantescas e com a dupla infalível para combater tudo o que é infecção mais ou menos indeterminada: antibiótico e injeção. Mesmo assim, desde a sexta passada, o Antonio não tira o sorriso do rosto. Toca a abertura da novela, ele ri. Entra debaixo do chuveiro, ele ri. Até de olhos fechados, naquele estado embriagado de quem está mais pra lá do que pra cá, se fizermos algum barulho engraçado, ele sorri.

É difícil precisar quanto tempo se perde da vida ao ter um filho. Em todos os casos é muito. Caso contrário, não haveria tanta gente se lamentando ao descobrir uma gravidez não planejada. Mais do que as previsíveis noites em claro, perde-se, em maior ou menor grau, as viagens a dois, os encontros com os amigos marcados em cima da hora, o tempo disponível para ler, para andar de bicicleta, para fazer uma pós-graduação. Aprendemos a comer comida fria, depois de todos os parentes, sem relação direta com a hora em que o corpo sente fome. Criamos a capacidade de cochilar em qualquer oportunidade e nas mais improváveis posições. Nosso próprio bem-estar cai para segundo lugar nas prioridades. Antes, é preciso colocar o rebento para dormir.

Até aqui nada de novo. Quando um casal decide ter uma criança, já tem uma boa noção de praticamente tudo o que está por vir. Porém, quando esta criança vem com uma síndrome, com alguma complicação, é como se queimassem o mapa. Como se quebrassem a bússola. Não se sabe direito por onde começar, nem para onde ir. Simples tarefas instintivas como a capacidade de respirar e de comer perdem a garantia. É como comprar um carro novo, girar a chave e não ter certeza se o motor vai ligar. E ainda ser alertado de que, em alguns casos, ele pode explodir.

É difícil precisar quanto tempo se perde da vida ao ter um filho especial. Em todos os casos é muito. Caso contrário, não haveria tanta gente se lamentando ao descobrir uma síndrome inesperada. Mais do que as previsíveis noites em claro, perde-se, em maior ou menor grau, a chance de ver seu bebê começar a andar quando completa um ano, perdem-se encontros com a família e com os amigos para cuidar de problemas de saúde, perde-se a serenidade ao acompanhar o desenvolvimento do seu filho, com uma amarga dose de decepção a cada marco que começa a atrasar. Aprendemos a dar valor para pequenas conquistas – na verdade gigantescas – como a habilidade de sugar, engolir, mastigar. Criamos a capacidade de dormir com os ouvidos abertos, alertas para qualquer ruído, ou falta dele. Nosso próprio bem-estar cai para décimo segundo lugar nas prioridades. Antes, é preciso medir a febre, tentar dar dois ou três remédios sem que seu filho cuspa, tentar dar um pouco de comida sem que ele engasgue e tussa, rezar para que não vomite, limpar tudo quando vomita, tirar o muco da garganta, ouvir a respiração, fazer nebulização e, dependendo do diagnóstico daquela semana, ainda ter dúvidas se o seu rebento conseguirá dormir.

Por buscar encarar as dificuldades do Antonio de forma positiva e por de fato amá-lo incondicionalmente, talvez eu transmita a sensação de que está sempre tudo bem. Talvez eu passe a impressão de que, apesar de não ter a menor ideia do que pode acontecer com o meu filho, está tudo sob controle. Por fazer questão de iluminar as conquistas dele em vez dos obstáculos, e por acreditar que ele surpreenderá as pessoas – especialmente a mim – em todos os sentidos, talvez meus relatos não sejam tão transparentes assim. Talvez não sejam absolutamente fieis à realidade dos fatos.

Infelizmente, apesar de desejar ardentemente o contrário, o amor não tem poder de cura. Pelo menos quando seu filho tem um pico de febre no meio da madrugada. Ou quando sufoca até ficar roxo. Em momentos assim, não adianta você simplesmente amá-lo fervorosamente. Não adianta simplesmente esperar que tudo dê certo. Quando a crise é grave, calma e otimismo são até perigosos. Amenizam o senso de urgência. Atrasam a ação. Quando você finalmente desiste de se iludir e toma alguma atitude, pode ser tarde demais.

Há semanas me incomoda o enganoso clima de equilíbrio e tranquilidade que meus textos evocam. Muitas vezes tenho falado sobre felicidade e outras introspecções positivas, mas não raro estou escrevendo de dentro de um quarto do hospital, assistindo meu filho passar por exames invasivos, procedimentos traumáticos, dolorosos, sem contar toda a angústia e desconforto de uma internação. Senti a necessidade de compartilhar que há um lado muito pesado nesta história toda. Precisava colocar um pouco de tinta escura neste quadro que as minhas palavras desenham. Senão ele não seria nem mesmo uma representação do real. Seria pura encenação. Um faz de conta sobre a vida com uma criança especial. Uma criança absolutamente encantadora, sim, mas com questões de saúde e comprometimentos cognitivos preocupantes, que criam um dia a dia nada fácil e um futuro indecifrável.

Entretanto, apesar do meu lado aflito ter tomado as rédeas nos últimos dias, apesar de eu ter sucumbido por alguns instantes à minha compreensível vontade de me transformar em vítima – vontade que todos os pais de crianças com necessidades especiais enfrentam, mas muitos, como eu, procuram rejeitar –, faz três dias que o Antonio só ri. Pelo visto, a dor foi embora. Pelo jeito, os incômodos cessaram. E a cada oportunidade que encontra, ele abre aquela risada com os olhinhos fechados, exibindo os oito dentes, lindos, mais separados do que juntos. Garanto que o meu lado carrancudo ainda está no comando. Tenho andado com o humor nas trevas e um vinco de preocupação na fronte. Posso assegurar que as minhas queixas e lamentações estão tentando resistir. Mas, felizmente, acho que não vão conseguir.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Atriz perde biquíni no mar



Digamos que você fosse editor ou editora de um portal de internet, noticiário de televisão, revista ou jornal. Sua principal função é selecionar os assuntos que serão levantados e veiculados. Suponhamos também que você adotasse a tática de separar as notícias possíveis em duas grandes gavetas imaginárias: notícias importantes e notícias desimportantes. E que, dentro destas gavetas, você ainda fizesse a subdivisão entre notícias divertidas, notícias sérias e notícias tristes.

A descoberta da cura de uma doença seria uma notícia importante e séria, sem dúvida. O final de um campeonato, notícia desimportante e divertida. A reeleição de um político comprovadamente corrupto, notícia importante e triste. A morte de uma celebridade, notícia desimportante e triste.

Antes que meu argumento se perca por causa de uma premissa inválida, ressalto que o significado de notícia não é passível de adjetivação. Notícia é notícia e ponto final. O grau de importância é relativo para cada pessoa, para cada público. O que é relevante para um grupo de pessoas pode ser completamente inútil para outro. As gavetas imaginárias da minha hipótese são falácias no jornalismo real.

Porém, minha tese conta com o bom senso coletivo de que notícias que podem mudar os rumos da humanidade, de uma nação ou até mesmo de um município sejam consideradas mais relevantes do que chamadas simplesmente polêmicas, ou engraçadas, e que se desintegrarão junto com os papéis dos jornais. É intuitivo considerar fatos que afetam a vida das pessoas de maneira sólida e duradoura como prioritários em relação a eventos que podem chamar muita atenção agora, mas que amanhã estarão esquecidos não só pela mídia, mas também por mim e por você.

Se esta teoria estivesse correta – e se de fato você fosse editor ou editora de um espaço de notícias –, acredito que cem entre cem pessoas (eu inclusive) selecionariam praticamente todas as notícias da gaveta “importantes” e aproveitariam da gaveta “desimportantes” apenas as notícias realmente divertidas, ou as profundamente tristes (ou seja, os fatos que, apesar de irrelevantes para a maioria das pessoas, têm ao menos um bom potencial emocional). Racionalmente, o noticiário teria tudo para ser um sucesso. Teoricamente, a audiência teria tudo para explodir. Na prática, a coisa não é bem assim.

Na manhã desta segunda-feira acessei o site UOL, que se vende publicitariamente como o portal com o melhor conteúdo da internet brasileira, e vi o seguinte ranking de notícias mais lidas:

1. Panicat muda o visual e raspa a cabeça ao vivo 
2. Minha filha é absolutamente normal, diz Justus 
3. Filho do cantor Leonardo teve parada cardíaca 
4. Grazi revela desejos antes de ter primeira filha 
5. Após protótipos, Ford apresenta novo Ecosport

Pela minha classificação, as mais lidas do UOL ficariam assim:

1. Desimportante e divertida 
2. Desimportante e séria 
3. Desimportante e triste 
4. Desimportante e divertida 
5. Desimportante e séria

Não condeno de forma alguma a busca de informação com finalidade de puro entretenimento. Sou extremo defensor de que, para uma criança ou adolescente adquirir o hábito da leitura, por exemplo, é preciso começar por temas que atraiam sua curiosidade, por mais idiotas que pareçam, por mais duvidosa que seja a qualidade do autor.
No caso do UOL, antes de prestar atenção ao ranking, eu mesmo havia passado os olhos pelas três primeiras notícias, e, de fato, tinha clicado na chamada sobre a filha do Roberto Justus, uma criança que sofre uma especulação cruel da imprensa por ter feições similares às de algumas síndromes genéticas e que, por razões óbvias, chama a minha atenção.

O que me impressionou é que não apenas eu, mas também provavelmente alguns milhares de brasileiros (não tenho a menor ideia de quantas pessoas acessam um grande portal ao dia) estavam investindo o seu tempo em cinco temas que em poucas semanas terão se dissolvido no ar. Estávamos nos dedicando a assuntos que preencherão eventuais silêncios no elevador, ou conversas na mesa do bar, mas que, no fundo, não levarão nenhum de nós a lugar algum. Não acrescentam nada a ninguém.

Senti uma vergonha interior, como se meu intelecto repudiasse o fato de meus olhos se renderem quase sem resistência a qualquer chamada mais polêmica, ou quente, ou simplesmente engraçada, sem filtrar de forma competente o que realmente vale a pena ver. Meu lado esquerdo do cérebro sentiu desgosto ao flagar o lado direito se divertindo com leviandades, esbaldando-se hedonicamente com lançamentos de produtos de que não preciso, matérias sobre assassinatos macabros nas periferias ou com descrições detalhadas – e absolutamente descartáveis – do dia-a-dia das celebridades.

Não vou levantar a bandeira do cidadão politizado, do ser consciente, do intelectual bem informado ou do consumidor inteligente que eu gostaria de ser. A boa informação existe por todos os lados e está disponível para quem quiser se alimentar dela. Assim como os lixões que se avolumam nas cidades, a imprensa também produz uma quantidade inacreditável de informação inútil, antiética, incorreta ou simplesmente irrelevante para a maioria das pessoas. Podemos não ser editores de jornal. Podemos não fazer noticiário de TV. Mas devemos editar a bobajada. E investir um pouco mais de tempo em notícias que realmente valem a pena ver, ouvir ou ler.

OBS: Quanto ao título do texto, a notícia é verdadeira, é sobre uma figurante do Zorra Total, foi veiculada em 2007 e está aqui, para quem quiser comprovar e tiver tempo a perder: Atriz da Globo perde biquíni no mar

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Mens sana in corpore sano


Se eu pudesse pedir um presente de aniversário, qualquer um, no momento eu escolheria uma porção de anticorpos menos baleados. Faz dez dias que eu luto praticamente em vão contra uma gripe inacreditavelmente persistente. Na última semana, coloquei antigripal para dentro feito pipoca. E o nariz continua entupido, a voz continua fanha, o ouvido continua tapado.

Não há dúvida de que a saúde do corpo é um reflexo da mente. E de que este maldito vírus só encontrou porta de entrada porque eu estava há semanas com a cabeça cheia de preocupação. Enquanto eu passava as noites acordado, meu sistema imunológico dormiu na guarita. A gripe não teve problema algum para pular o portão.

Antes que fiquem muito aflitos, não aconteceu nada que não vá passar. Apenas alguns trabalhos importantes, somados ao fato do Antonio ter feito uma cirurgia e ter ficado doente duas vezes no último mês, todas as ocasiões com algum tempo de internação. Por diversos dias, revezava meus turnos entre reuniões na empresa e o delicioso sofá de acompanhante no hospital. Passava em casa para tomar banho e trocar de roupa. Vida de publicitário. Vida de pai. Realmente não estou fazendo reclamação.

Entretanto, apesar do Antonio estar se recuperando bem e os trabalhos terem sido entregues, estes imprevistos me trouxeram sim um lamento: perdi uma série de eventos para os quais havia me programado. Deixei de ir a aniversários de pessoas queridas, não pude comparecer a eventos beneficentes que realmente gostaria de participar, cancelei uma viagem que havia planejado há meses, em que conheceria alguns leitores do blog, faria consultas com médicos e fisioterapeutas que poderiam ajudar o Antonio e reencontraria pessoas da família de quem estamos com muitas saudades.

Olhei para trás e fiz as contas. Faz um bom tempo que sou obrigado a cancelar quase todos os encontros que me proponho a realizar. Mês atípico, eu sei. Como todos dizem: “vai passar”. Na verdade, já está passando. Neste final de semana, apesar de assoar o nariz a cada meia hora, finalmente tirei dois dias inteiros para descansar.

Por isto, já que o dia do aniversário é um momento de pedidos, não tenho dúvidas que o meu desejo deste ano é saúde. Saúde para realizar meus sonhos profissionais, para cuidar do meu filho, para continuar caminhando ao lado da minha mulher, para viver o que a vida pode dar, pelo tempo que ela me der.

Saúde é o que preciso. Se pensar bem, ninguém precisa de muito mais.

Obrigado a todos que me cumprimentaram pelo dia de hoje.
Saúde a todos. Até semana que vem.

 

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Não há espaço para tanta estrela no céu


Li na revista Veja desta semana a resenha de um filme, chamado Jovens Adultos, cuja personagem – bonita, inteligente, relativamente bem sucedida – se acha muito especial, mas tem um comportamento infantil e aborrecido, pois pensa que o mundo não reconhece devidamente a sua condição. Em tempos em que muitos aspiram a ficar famosos ou milionários pelos simples fato de existirem, vide a quantidade de inscritos no Big Brother e programas afins, impossível haver tema mais atual. O retrato de uma geração.

Na mesma revista, há uma outra matéria sobre o perfil dos jovens bem sucedidos na era digital. São todos seguidores de Steve Jobs e Mark Zuckerberg, e alguns vêm fazendo história e muito dinheiro com invenções aparentemente simples (e talvez por isso geniais), como o aplicativo Instagram para telefones, por exemplo. Um grupo que agora se orgulha da condição de nerd e que usa seus conhecimentos como catapulta para o sucesso instantâneo, seja financeiro, seja profissional.

E na programação da TV, chovem disputas de canto, de dança, de culinária, de corte de cabelo, de treinamento de cães e, mais recentemente, até de “vale-tudo”, todas com a mesma fórmula: espremer anônimos até a última gota em busca do algo a mais, em busca do talento que separa os deuses dos simples mortais. Nada mais é do que um reflexo da nossa necessidade por holofotes, exatamente como a personagem do filme ali de cima. No fundo, nos dias de hoje, a ninguém basta uma vida simples e digna. Queremos fãs, prêmios e palmas. Queremos milhões. Queremos nos sentir especiais.

O problema é que a conta não bate. Ao mesmo tempo em que qualquer um pode ter sucesso da noite para o dia – e gerações inteiras estão sendo levadas a crer que merecem este sucesso só por ter o corpo bonito, saber cantar ou ser capaz de mexer no computador – não há espaço no céu para tantas estrelas. A cada Zuckerberg que surgir, milhões de hackers levarão vidas tão insossas quanto a de um lavador de pratos. Cedo ou tarde, o sonho da fortuna fácil irá, aos poucos, desaparecer.

Apesar de não cogitar entrar em reality show, e de definitivamente não ter talento para ganhar uma competição de canto na TV, também faço parte da multidão. A real possibilidade de fazer a diferença para o mundo e ganhar rios de dinheiro com uma boa ideia também atiça minhas ambições. Adoraria ser criador de um conceito hoje e vendê-lo por bilhões daqui a alguns anos.

Porém, enquanto eu desenhava mentalmente minha ideia genial, enquanto eu fritava os miolos pensando em como ficar rico com a Copa do Mundo de 2014 no Brasil, a vida me deu um filho especial. Este sim, um ser humano especial com todas as letras. Uma criança fora do comum, em todos os sentidos.

Foi como se eu apertasse a tecla pause na minha corrida do ouro particular. Como se tudo – trabalho, planos, desejos – tivesse perdido o efeito da gravidade e ficasse suspenso no ar por tempo indeterminado. Fiquei surdo para as notícias da TV. Fiquei cego para o que estava acontecendo no mundo. Afastei tudo para os lados. Agora eu tinha algo mais importante com o que me preocupar.

O dia-a-dia com o meu filho me apresentou uma série de pessoas que fazem uma diferença imensa no mundo (no meu, pelo menos), porém programa de TV nenhum se propõe a gravar. São fisioterapeutas que ensinam as pessoas a andar, independentemente da limitação. Médicos que atendem ligações de madrugada e dão plantões nos hospitais, apesar dos salários. Pedagogos que acordam cedo, ganham quase nada, mas estão sempre com um sorriso no rosto, dispostos a dedicar seu tempo a meu filho e a outras crianças com necessidades especiais.

Fazendo parte de uma geração em que todos os modelos de sucesso estão associados a uma ascensão meteórica na carreira e a cifras astronômicas na conta bancária, sinto falta, em minha volta, de pessoas sonhando em ser professor, em ser médico de hospital público, em ser construtor. No caso de Brasília, cidade em que vivo, vejo o anseio pelo concurso público exclusivamente pelo salário, e não pelo desejo de ajudar o país a mudar. Sinto falta da gana de arregaçar as mangas e fazer algo de importante, mesmo que não pague bem. Sinto falta de mais pessoas como as que têm ajudado a mim e a meu filho. Gente que faz trabalho voluntário. Pessoas que perdem seu tempo com os outros. Gente que não precisa ganhar uma competição (ou muito dinheiro) para se sentir especial.

Antes de ter o meu filho, eu também me acreditava merecedor de todos os louros. Tinha a ilusão de que, por ter estudado bastante, por ser correto, por ser capaz, eu teria direito a uma vida perfeita, com filhos saudáveis, casa com piscina, carro do ano, viagens internacionais. Estes sonhos continuam, é claro. São metas razoáveis. Mas quando o Antonio nasceu, aprendi uma lição amarga: eu não era mais especial do que ninguém. Compreendi da forma mais eficiente possível que, para a natureza, independentemente do que somos (ricos, pobres, feios, bonitos, Mark Zuckerberg, pedreiro Zé), somos apenas mais um. Entendi que não teria privilégios e que a minha vida poderia tomar um rumo inesperado, como a vida de qualquer pessoa.

Estranhamente, mesmo com toda a dor sofrida ao ter um filho com necessidades especiais, hoje sinto uma sensação de alívio. Tirei das minhas costas a auto-cobrança do sucesso incondicional em todos os aspectos da vida. Aprendi que está tudo bem se alguns planos derem errado, se nem tudo sair perfeito. Arranquei uma boa dose de inveja de dentro do meu peito, inveja de quem está melhor profissionalmente ou está ganhando uma grana preta. E preenchi com algo bem mais saudável: um pouco mais de paz. A vida com o Antonio pode não me deixar rico, pode não me trazer fama, pode não fazer o mundo reconhecer meus talentos. Mas faz eu me sentir um pai muito especial.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Arranhão besta

Neste final de semana estávamos passeando com o Antonio no carrinho, no shopping, quando um menino de mais ou menos 7 anos passa pela gente e grita:
­­­- Mãe, você viu que bebê estranho?

Não olhei para trás. Não queria deixar a mãe, que provavelmente estava procurando algum lugar para se esconder, ainda mais constrangida. Na verdade, até ri por dentro, certo de que não havia maldade na surpresa do menino. Acho a espontaneidade das crianças engraçada. Porém, por mais que eu tente raciocinar, por mais que minha alma compreenda o que aconteceu, é preciso admitir: doeu.

A incapacidade infantil de interpretar códigos sociais é ao mesmo tempo uma dádiva e uma cruz. Quando pequenos, somos admirados por nossa inocência, nossa pureza, e, não raro, quando adultos, lamentamos ter perdido qualidades tão valorosas. Entretanto, também somos inúmeras vezes repreendidos por expressarmos estas mesmas características em forma de perguntas constrangedoras, comentários inconvenientes ou simplesmente em preguiça de pedir licença, lavar as mãos ou agradecer.

Não faltam papagaios repetindo que a infância é a melhor época da vida. Será mesmo? Para quem tem o ímpeto de ser dono do próprio nariz, os primeiros anos podem se tornar um verdadeiro martírio. Uma época em que não se tem livre arbítrio, talvez o bem mais desejado pelo ser humano. Um tempo em que pais, avós ou professores, infelizmente nem sempre movidos pelos melhores motivos, porém sempre garantindo que é para o “seu bem”, tomam decisões por você. Sim, há vantagens em não ter que se preocupar com nada. Há a espera inesquecível pela fada do dente, pelo coelho da Páscoa e pelos presentes embaixo da árvore de Natal. Porém, em pouco tempo tudo isto cansa. E entra em jogo uma espera ainda mais insuportável, normalmente creditada aos litros de hormônios que inundam nosso corpo na adolescência, mas que psicologicamente não é nada mais nada menos do que a agonizante espera por crescer.

O garoto que estranhou o Antonio não quis nos ofender. Ele está na idade em que o mundo para de fazer sentido. A mente fica tomada de por quês. Ver um bebê como o meu filho pela primeira vez foi só mais uma peça difícil no quebra-cabeça do garoto. Espero, sinceramente, que a mãe dele use a situação para explicar algo novo ao filho. Que ela inclua a aceitação das diferenças no rol de valores que formarão o caráter deste menino.

Já não sou criança há bastante tempo. Meus pais me ensinaram com sucesso a suportar alguma dor, a lidar com frustrações e me deram explicações suficientes para que eu amadurecesse bastante precocemente. Porém, o comentário do garoto me atingiu de um jeito inesperado e, como uma ferida que lateja, tem voltado à minha cabeça com certa frequência. Sei que é bobagem. Considero minha reação bastante infantil. Foi apenas um arranhão no meu ego de pai. Não vai causar trauma, não vai deixar cicatriz, mas ainda assim insiste em arder.