segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Reeleição

Aqui em casa o Presidente está reeleito.

Nos últimos quatro anos, fez um corte drástico nos gastos de viagem do Ministro da Fazenda e da Ministra da Educação. As despesas com outros itens supérfluos como idas ao cinema, a festivais de música e a eventos noturnos, mesmo aqueles em que só é preciso levar o que for beber, também despencaram. Tendem a zero há vários meses.

O consumo das famílias, entretanto, aumentou. Itens antes inexistentes na mesa das pessoas, como leite em pó, Danoninho e gelatinas de todas as cores, hoje são uma realidade diária. Nunca antes na história desse país consumiu-se tanta farinha láctea. Logo nos primeiros meses de mandato do Presidente, a indústria de fraldas descartáveis teve um crescimento de aproximadamente 500%. O comércio também se manteve aquecido e obteve lucros inéditos, em especial o de vestuário infantil e o de brinquedos.

A área da saúde também tem apresentado índices positivos. Com medidas simples, como remédios preventivos e melhorias na textura dos alimentos, conseguimos desopilar as emergências dos hospitais. Sabemos que ainda há muito para fazer, em especial na questão do excesso de viroses por ano. Por isso esse Governo está lançando o programa Menos Médicos, com uma série de ações para reduzir as visitas ao pediatra.

Como todos sabem, uma das medidas mais revolucionárias do primeiro mandato do nosso Presidente foi a redução da quantidade excessiva de Ministérios. O Ministro da Fazenda acumulou também as funções de Ministro do Planejamento, do Esporte, da Cultura e do Turismo. A Ministra da Educação, por sua vez, passou a comandar também as pastas da Saúde, dos Transportes e da Agricultura, além da Secretaria Especial dos Direitos da Mulher, com foco especial no direito de demorar para se vestir. Para o bem geral da nação, decidiu-se manter o Ministério da Casa Civil com um sistema de revezamento de Secretárias, que são “os braços direito e esquerdo” do nosso Presidente, em especial nos momentos de comer, de tomar banho e de botar os vídeos da Galinha Pintadinha.

Os assuntos referentes à mobilidade urbana continuam sendo um grande desafio. A nação continua engatinhando para uma solução, mas ainda não anda com as próprias pernas. Soluções provisórias, como os programas assistenciais Colo do Papai, Colo da Mamãe e Carrinho de Bebê já dão claros sinais de que logo não serão suficientes para suportar a demanda por locomoção. Mas o Governo está comprometido a encontrar alternativas já no primeiro ano do novo mandato, com auxílio de uma comissão de especialistas e fisioterapeutas.

A sustentabilidade é também prioridade para o nosso Presidente, que dedica atenção especial para o abastecimento de água. Grande admirador de pias com água corrente – a ponto de ter desenvolvido uma obsessão por banheiros e cozinhas –, Vossa Excelência implantou um sistema de compensação: todos os dias, em vez de abrir o chuveiro, toma banho em seu miniofurô, que é muito divertido e ainda economiza água. Há também uma grande preocupação com as matas, visto que um passeio pela sombra das árvores continua sendo sua segunda opção preferida de lazer, atrás apenas de mergulho em piscinas de bolinhas.

O tema educação se mantém como a maior bandeira desse Governo. Para atender as diversas necessidades de aprendizado, o Presidente implantou um sistema multidisciplinar, com terapias e atividades especiais pela manhã e currículo tradicional em escola regular à tarde. Os índices do IDEB apresentaram sensível melhora, mas sabemos que, assim como na questão da mobilidade, algumas mudanças serão necessárias para atingir as próximas metas. A Ministra da Educação e o Ministro da Fazenda estão trabalhando em parceria para encontrar o melhor modelo de educação para o País. O Presidente solicitou que eles apresentem um pacote de medidas para implantação já em 2015.

Já são quase quatro anos de grandes mudanças. Nosso País passou por algumas das suas piores crises, mas saiu fortalecido de cada uma delas. Desde o início da campanha, as pesquisas davam a reeleição do Presidente como certa. Pois durante todo seu mandato, governou com quase 100% de aprovação, caindo alguns pontos apenas quando enfiava os dedos na boca e vomitava tudo o que comia. No início havia muito medo. O futuro era incerto. Os países em volta olhavam com receio. Mas aos poucos, os problemas foram sendo contornados. O Presidente se revelou a figura mais carismática que esse País já conheceu. Sem dizer uma palavra, é capaz de convencer pais, mães, avós, tios, primos, médicos, professores e babás a fazerem o que ele deseja. Hoje vivemos uma vida comum, com preocupações comuns, como qualquer família com criança em casa. E podemos repetir uma famosa frase com propriedade. A esperança venceu o medo.


segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Perdas





Nessa semana, em parte por conta da impossibilidade de decorar tantas senhas e nomes de usuários, em parte por causa do meu analfabetismo digital, corro o risco de perder o domínio flizam.com. Por isso, este é possivelmente meu último post sem a indesejável extensão “blogspot” no nome do blog. Veja bem: possivelmente. Após algumas ligações internacionais para o provedor do domínio, seguida de algumas horas de recuperação de logins, passwords e atualização de cartões de crédito, acredito que o problema está resolvido, apesar de não ter recebido confirmação alguma.

Essa microscópica experiência, quando comparada a tudo de mais importante que pode acontecer na vida, trouxe de volta à minha mente uma verdade tão frequente, tão inegável, que perceber a sua existência chega a parecer clichê: temos uma propensão a dar o verdadeiro valor para as coisas apenas quando estamos prestes a perdê-las.

Por favor, perdoem-me por utilizar filosofia tão barata. A questão é que essa ideia se presta perfeitamente como abertura de um relato de outra experiência, que tive há cerca de vinte dias, esta certamente bem mais relevante do que minha caça a senhas perdidas na internet.

Todos os anos, de 18 a 25 de setembro, o Brasil celebra a Semana Nacional de Trânsito, com campanhas de conscientização para motoristas e uma agenda nacional para discutir os problemas relativos à segurança nas ruas e estradas. Neste ano, tive a oportunidade de participar da criação da campanha, com objetivo de ajudar a reduzir os acidentes de trânsito no País.

Independentemente da ideia criativa, pois basta assistir o comercial para entendê-la, o ponto importante desse trabalho foi ter histórias reais por trás desse comercial: a história das vítimas de acidentes de trânsito que aceitaram participar da campanha.

Para quem não trabalha em publicidade, a produção de um comercial pode parecer algo bastante confuso e impessoal. É preciso acertar iluminação, figurino, maquiagem, câmera, som, cenário, figuração, entre uma série de outros detalhes técnicos, que podem transformar uma simples cena de alguns segundos em um trabalho de muitas horas, envolvendo dezenas de pessoas.

Cheguei ao set de filmagem – um hospital de reabilitação para crianças com deficiência – por volta de oito da noite e encontrei o cenário típico: várias pessoas do staff andando de lá pra cá com equipamentos de vídeo, plugando cabos, ligando refletores, acertando trilhos para a câmera, medindo iluminação e fazendo tudo o que se faz antes de qualquer filmagem profissional.

Porém neste caso havia uma diferença. Em vez de atores tranquilos, sentados em suas cadeiras, esperando pelo chamado do diretor, desta vez encontrei famílias de três vítimas de acidentes de trânsito, olhando com alguma dúvida (e curiosidade) para toda aquela movimentação, sem ninguém ao lado que explicasse de maneira mais clara tudo o que estava acontecendo.

No momento que entrei no set, senti que havia uma tensão no local. Os nossos participantes eram pessoas com sequelas graves de acidentes. E por algum momento, senti que ninguém por ali havia conversado com eles da forma que eu gostaria que tivessem conversado comigo, caso eu tivesse topado levar o Antonio para um comercial, por exemplo. Pior que isso, senti que algumas pessoas evitavam olhar para eles, como se não quisessem ser indiscretos ao observar a evidente deficiência.

Aquela situação me incomodou profundamente. Precisava quebrar o gelo e estabelecer uma relação mais humana – e menos profissional – com aquelas pessoas. Imediatamente pedi para ser apresentado às famílias. Falei com eles um a um, contei que eu sou pai de uma criança com deficiência e que conheço de alguma forma o calvário deles em incontáveis sessões de fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional, entre outras terapias de reabilitação. Expliquei que fui um dos criadores da campanha e agradeci a coragem de exporem as suas histórias em prol de uma causa importante, que é reduzir os acidentes.

Em questão de minutos, percebi o clima mudar. Pouco a pouco, as famílias sentiram-se mais à vontade. E a equipe no set também. A situação ficou mais confortável para que eles pudessem compartilhar as suas histórias. Criamos vínculo. Apesar de meu filho não ser vítima de acidente, e sim ter nascido com uma síndrome genética, confesso que naquele momento me sentia mais parte daquelas famílias do que da equipe de profissionais que estava produzindo a campanha. Temos uma luta em comum por nossos direitos. Sofremos os mesmos tipos de preconceitos. Senti que estava junto dos “meus”. E tenho certeza de que a recíproca foi verdadeira.

O primeiro participante que conheci foi o João, um pai de família, de São Paulo. No dia do acidente, ele estava passeando de moto com a esposa, quando decidiu parar no acostamento de uma rua. De repente, um carro desgovernado surgiu do nada e bateu neles. João perdeu uma das pernas até a altura da coxa. A esposa dele foi jogada para longe e faleceu por falta de socorro. João hoje anda com prótese e trabalha para recuperar os movimentos do braço esquerdo, que também foi atingido.

Em seguida conheci a Wellen e sua família. A Wellen tem 22 anos e sofreu um acidente com 17. Estava no banco do passageiro, sem o cinto de segurança. O motorista sofreu apenas pequenos ferimentos. Wellen, por outro lado, foi jogada pra fora do carro e ficou em coma por dois anos. Depois de acordar, progrediu muito. Deixou de se alimentar por sonda e já consegue ingerir alimentos pastosos. Porém ainda não recuperou os movimentos do corpo e não se comunica pela fala. Aprendeu um sistema de comunicação por sinais dos olhos. E está batalhando para conseguir se comunicar por computador.

Por fim conheci a Andrea, uma garota de 29 anos que sofreu um acidente em 2010. Ela estava voltando de uma noite com as amigas. Ao buscar o carro na casa da amiga, chegou a ser convidada para dormir lá, mas recusou. Andrea não se lembra detalhadamente do que aconteceu, mas parece que bateu num carro, sem grandes consequências. Não se sabe exatamente porque, em vez de descer do carro e resolver o problema, Andrea fugiu da situação. Nesta fuga colidiu novamente, desta vez num poste, e com gravidade. Andrea também ficou em coma e hoje se movimenta com bastante dificuldade, com auxílio de andador. Também teve a fala e a visão afetadas.

Apesar dos imensos desafios que têm à frente e de obviamente ainda sofrerem muito ao relatarem suas histórias, todas as famílias que participaram da campanha mantêm uma postura de perseverança. O maior sinal de atitude positiva é ter objetivos de vida. E isso todos eles mostraram ter. João recusou a aposentaria a que tem direito e está treinando para participar de maratonas e campeonatos de futebol. Wellen está focada em conseguir se comunicar por computador para voltar a estudar direito, curso que interrompeu por causa do acidente. Andrea chegou a dizer na campanha que “não desiste nunca” e quer voltar a trabalhar.

Além de ter desenvolvido um inevitável afeto em tempo recorde por essas pessoas, fiquei imaginando o quanto eles devem ter passado a dar valor à vida que por pouco não perderam. Infelizmente os acidentes trouxeram mais consequências ruins do que boas. Mas é inegável que após esse tipo de experiência as pessoas mudam pra melhor. As perdas e ganhos tomam novas proporções. E é nisso que me identifico com eles. É nesse ponto que o Antonio me transformou.

Assim como João, Wellen e Andrea, eu sei o quanto o simples ato de andar é importante e difícil. Sinto diariamente na pele (na verdade, na coluna) as dificuldades do meu filho. Assim como os parentes de João, de Wellen e de Andrea, também sei como é passar por uma tragédia na família – tragédia não é a melhor palavra, mas é a que vou usar. Sei como é viver aquilo que ninguém quer viver. Experimentei na minha própria vida aquilo que chamamos de azar.

Olhando para trás, vejo que o que mais me tocou ao fazer essa campanha foi ver que mais do que perder uma perna, mais do que perder os movimentos, mais do que perder a fala, aquelas famílias perderam algo que só atrapalha as nossas vidas: a sensação de invulnerabilidade. E entendi que é por isso que me sinto como um deles. Porque foi exatamente isso que eu perdi, no instante em que vi meu filho nascer.

Se quiser conhecer, assista o making of e o filme da campanha aqui.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Chorume literário


Preocupado com o futuro e motivado por uma imortal esperança de organizar minha vida financeira de um jeito mais inteligente, decidi ler alguns livros de autoajuda sobre o tema.

Não assumo isso sem embaraço, já que autoajuda é aquela categoria que invariavelmente traz valores depreciativos ao seu leitor, seja ele um verdadeiro desesperado, seja ele apenas um curioso.

Assim como todo mundo, também sinto pena ao observar alguém tirando uma edição de “Como Fazer Amigos & Influenciar Pessoas” da prateleira. A mim, parece óbvio que a lição número 1 para se fazer um amigo deveria ser “não leia um livro cuja capa revele que você não tem nenhum.”

Porém, ao ter coragem de ler meus livros de autoajuda (juro que não são muitos) somente em ambientes privados, geralmente trancafiado no quarto, percebi algo bastante preocupante: precisar de ajuda é algo que envergonha as pessoas. E buscar ajuda – uma atitude louvável 100% das vezes – é visto, quase na mesma porcentagem, como fraqueza ou algo constrangedor.

Talvez o preconceito esteja em pagar por essa ajuda, já que um bom bate-papo com um amigo ou um familiar é um remédio largamente utilizado desde quando o homem parou de marretar mulheres na cabeça e começou a se comunicar. Porém, dentro de cada um de nós reside algum preconceito inexplicável com relação a ressarcir alguém ou adquirir algum produto que ofereça uma ajuda mais profissionalizada. Psicólogo é coisa de louco. Personal trainer é frescura de rico. Professor particular é pra burro. Site de namoro é pra quem não consegue comer ninguém. E a lista segue.

O problema é que, com medo de julgamento ou de virar chacota entre os amigos, ficamos em um limbo em que nem buscamos alguém que possa resolver a situação, nem adotamos uma atitude “faça você mesmo”, tão comum nos Estados Unidos, não por acaso, um dos países que mais cria best-sellers mundiais de autoajuda.

Independentemente das inúmeras promessas falsas estampadas nos títulos desses livros, e mesmo com a compreensível equiparação a chorume editorial – muitos, de fato, são terrivelmente escritos e traduzidos –, as imensas mesas sobre o tema na porta de cada livraria são um sinal inegável de algo importante: todos nós queremos algum tipo de ajuda. Na maioria das vezes, com soluções fáceis, sim. Muitas vezes amparados por teorias improváveis, sim. Cegos por ilusões e fantasias, sim. Mas queremos. E não há mal nenhum em pagar por ela, ainda mais se for um livro barato. Relaxe e goze. Se preciso, em 10 lições. 

Feita toda essa defesa, segue abaixo a lista de livros de autoajuda que pretendo escrever. Decidi seguir a primeira lição da minha atual leitura financeira: “faça seu dinheiro trabalhar por você”. Como bom publicitário, resolvi lançar essa campanha teaser, com custo zero, para ver se cola. Quem sabe alguém por aí se interesse por um dos títulos? Ou quem sabe um dia eu tome vergonha na cara e realmente arranje um bom tema para escrever.


  1. Como Prometer Textos para Segunda e Fazer com que as Pessoas Aceitem na Terça. Ou na Quarta.

  1. Crie Teses Semanais com Pensamentos Baseados em Nada

  1. Cozinha Criativa – Desculpas e Receitas para o Lanche da Meia-Noite

  1. 500 Coisas Mais Importantes do que Lavar a Louça

  1. Seja Feliz Dormindo – Lições Para Quem Ainda Não Tem Filhos

Aceitamos encomendas.


Dale Carnegie, autor de "Como Fazer Amigos & Influenciar Pessoas", pensando nos milhões que ganhou.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Banzo


Há alguns meses eu havia escrito sobre uma árvore que tinha ganhado de presente e sobre quanta vida e alegria ela tinha trazido para a nossa casa. Estranhamente, pouco depois de publicar o texto, a planta começou a definhar. O processo foi longo e sofrido. Com imensa tristeza, vimos as folhas começarem a queimar nas pontas, depois a secar e, por fim, assistimos a cada uma cair no chão. Os meses passavam e parecia que a árvore dava seus últimos suspiros. Com muito esforço, chegava a gerar brotos de novas folhas, mas por alguma razão desconhecida, por mais que se aguasse ou trocasse o vaso de lugar, algo simplesmente os impedia de vingar. Olhei para aqueles galhos secos e senti que era uma luta perdida. Imaginando que a nossa varanda não era o ambiente ideal para aquela espécie, comecei a considerar outras árvores para colocar em seu lugar.

Apesar do meu parco conhecimento botânico – e recentemente passei a assistir a um excelente programa na TV Cultura, “Um Pé de Que?”, para diminuir essa defasagem –, na hora me lembrei das pimenteiras e da crença de que elas murcham quando há mau-olhado em algum lugar. Afinal, se existe algo que irrita grande parte da população é alegria, felicidade e bom-humor, ainda mais quando motivados por coisas simplórias, como plantas ou sol, em vez de coisas mais importantes, como dinheiro. E de fato, àquela época, de mudança para uma casa nova com varanda e sem boletos de aluguel, eu provavelmente deveria parecer insuportavelmente contente aos olhos de quem estava tendo uma semana qualquer.

Superstições deixadas de lado, não comprei pimenteira, nem olho grego, nem espelhos para colocar na parede. Na verdade, em momento algum levei a sério a hipótese de que a árvore pudesse morrer por causa de inveja ou de energia negativa. Tendo a precisar de algo mais científico para me ater. E como toda casa sempre tem algo faltando ou algum conserto pendente, deixei outros assuntos ganharem prioridade antes de decidir o que fazer.

Um evento interessante que já deve ter sido amplamente estudado e descrito cientificamente é a capacidade humana de parar de prestar atenção em coisas que vemos todos os dias. Um exemplo clássico é quando dirigimos “no automático”. De tão acostumados com um caminho, quando percebemos, já estamos chegando ao destino e mal lembramos de termos percorrido as ruas anteriores. Eu, distraído por vocação, tenho praticamente uma cegueira para objetos rotineiros. Sou o típico sujeito que nunca encontra o abridor de latas na gaveta. Perco mais tempo procurando o carregador de celular do que de fato carregando a bateria. E, como era de se esperar, havia semanas que eu não observava a planta na varanda.

Foi por isso que ontem, no meio do jantar, tomei um susto ao perceber que a árvore estava repleta de folhas verdes e tinha quase o mesmo aspecto com que chegou para a gente. Minha mulher, com toda a naturalidade, lançou a sua teoria. “É assim mesmo. As folhas secam e depois nascem de novo.” É muito provável que ela tenha razão, mas confesso que essa tese de ciclo da planta me parece simplista e um tanto sem graça. Meu imaginário sugere que a árvore deva ter passado por um período de adaptação ao novo lar. Um “banzo” vegetal, aos moldes dos escravos africanos, que chegavam a adoecer e até a morrer de saudades da sua terra natal. 

Só o tempo dirá o que aconteceu. Se as folhas caírem novamente, voltaremos a varrê-las do chão, desta vez com a certeza de que logo tudo voltará ao normal. Se a árvore se mantiver cheia daqui por diante, ganha vida a minha hipótese, de que era preciso um tempo para ela se acostumar com a casa, para se sentir à vontade e voltar a respirar. E quanto à crença do mau-olhado, caso tenha existido algum, não tenho dúvidas de que acertamos no antídoto: simplesmente ignorar.


segunda-feira, 29 de julho de 2013

Para Cora


Há cerca duas semanas fomos avisados, por uma mensagem para o grupo de pais do qual fazemos parte, que uma criança americana com deleção no mesmo cromossomo que o Antonio – o cromossomo 6 – não resistiu às complicações da síndrome.

Não se pode dizer que ela tinha a mesma síndrome que o nosso filho. Deleções são partes apagadas do código genético. Se a criança nasce com um determinado pedaço apagado, as complicações podem ser problemas renais, respiratórios, entre outros. Porém, se o bebê nasce com outro pedaço perdido, embora do mesmo cromossomo, as questões de saúde podem ser completamente diversas, como problemas cardíacos, convulsões e assim por diante. Cada gene perdido é responsável pela formação de algum sistema diferente. E já que os genes apagados nas crianças raramente são coincidentes, pode-se dizer que a síndrome do Antonio (que não tem nome, é chamada apenas de Deleção do Cromossomo 6) dificilmente apresenta as mesmas conseqüências de saúde para as crianças ou o mesmo padrão de desenvolvimento. A única característica constante é o grave atraso motor e o retardo mental. As complicações de saúde – e sua gravidade – variam imensamente de criança para criança.

De toda maneira, a perda de uma criança com uma síndrome parecida, mesmo que minimamente, com a do meu filho, me comoveu de forma sem igual. Especialmente porque a mãe da menina relatou os últimos dias dessa luta, numa forma de compartilhar a dor, ou de refletir sobre tudo o que estava acontecendo. Não sei os motivos. Só sei que não foram dias fáceis para aquela família. Depois de inúmeras cirurgias sem grande sucesso e de incontáveis tentativas de tratamentos com medicamentos, foram avisados pelos médicos que não havia mais o que fazer para ajudar o coração da criança a funcionar. Ainda havia uma possibilidade de uma nova cirurgia, mas o bebê estava cansado, e teria poucas chances de sobrevivência. Os médicos dividiram que respeitariam qualquer decisão da família, mas emitiram a opinião que talvez o melhor fosse conviver com aquela criança da melhor maneira possível, pelo tempo que fosse possível. Por respeito à vida daquela pequena criança, talvez fosse a hora de parar de tentar salvá-la.

Não posso imaginar o quão difícil deve ter sido para esses pais tomar uma decisão tão dura. A bebê, chamada Cora, era a terceira de uma família completamente saudável. Sua irmã e irmão, poucos anos mais velhos, não viam a hora de voltar com a caçula para casa, quando seus pais tinham que pensar – sem perder a cabeça – na possibilidade de autorizar que aquele bebê nunca mais voltasse.

Com uma dor transmitida a cada frase, a mãe relatou que eles decidiram pela felicidade do bebê. Sentiam que sua filha estava cansada. Sentiam que haviam tentado de tudo. Decidiram tirar os tubos de respiração. Decidiram interromper a medicação. Decidiram deixá-la viver melhor, mesmo que isso fizesse o coraçãozinho dela parar.

Cora ainda sobreviveu 48 horas. Sorria sem parar. Trocava carinhos com a mãe. Recebeu visitas de inúmeros amigos da família. Cantaram “Three Little Birds” para ela. Ganhou últimos beijos dos irmãos. O relato deixou claro que foram momentos inesquecíveis. Vê-la sem enjoar por causa dos medicamentos. Vê-la bem, sorridente, brincando com as mãozinhas, mesmo que com o aviso dolorido dado pela sua respiração, cada vez mais curta e difícil.

Depois de muito lutar e de ganhar de presente dois dias de vida normal, Cora faleceu nos braços de sua mãe, numa noite tranquila, pouco depois da meia-noite, ouvindo cantigas, coberta de beijos e amor.

Na manhã seguinte à noite em que li esse relato, abracei meu filho longamente. E percebi que algo havia mudado em mim. Entendi, de forma mais clara do que nunca, o quanto tivemos sorte com o Antonio, mesmo nos dias mais difíceis. Relembrei os últimos meses e vi que todas as questões de saúde que passamos com ele sempre tiveram resultado positivo. Desde que ele nasceu, não perdemos uma batalha sequer.

Ao ver aquela família, igualmente dedicada, ter que tomar a difícil decisão perder o seu bebê, entendi que o bem-estar do meu filho não é somente resultado de bons cuidados ou do amor que temos por ele.

A vida – dele, minha, da nossa família – é um presente. 
E desde aquele dia, tenho procurado formas de agradecer.