segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Coração entreguista

Algumas dores são tão intensas, que o corpo precisa de um tempo para se manifestar. Elas não se revelam no instante da pancada. Não chegam estabanadas, fazendo alarde. Dores de verdade se aproximam em silêncio e esperam pacientemente o telefone sem fio das nossas células nervosas fazer a notícia correr. As cordas vocais congelam de medo. Os pulmões suspendem a respiração. O coração, entreguista, bate desesperado, nem tenta disfarçar. Só depois que todos os sistemas estão devidamente alarmados, a dor faz sua entrada triunfal, aguda, insuportável. Até os mais resistentes às vezes se rendem e deixam escapar uma lágrima.
 
Deve ter sido deste tipo a dor que atingiu uma amiga da minha mulher, ainda no tempo de adolescente. As duas papeavam tranquilas, andando por uma rua meio escura, mas ainda era cedo da noite, estavam perto de casa, não havia motivos para preocupação. De repente, surge um estranho por trás delas. O homem dá uma violenta trombada na menina e sai correndo, aparentemente sem levar nada. Assustadas, sem entender o que havia acabado de acontecer, as duas continuaram o trajeto com um pouco mais de pressa, até que a garota atingida começou a se sentir mal. Só então minha esposa percebeu que sua amiga estava sangrando – e muito. A garota havia levado uma facada profunda nas costas, mas o cérebro, que não é besta, foi avisando aos poucos. Achou melhor ir devagar.

Sempre que a Ana e eu contamos que temos um filho especial, uma das primeiras perguntas que nos fazem é se descobrimos durante a gravidez. Não, não descobrimos. Fizemos o melhor pré-natal que pudemos. Realizamos todos os exames. Tomamos todos os cuidados. Tivemos até a chance de repetir algumas imagens, só pela alegria de rever o nosso bebê ou conferir alguma informação. Com exceção de um ganho de peso mais lento nos últimos meses de gestação, nada levantava suspeitas. Estávamos preparados para tudo o que nos alertaram, para todas as possibilidades corriqueiras, mas nosso destino estava decidido a desviar o trilho e fazer o nosso caminho rumar para outros lados.

Até hoje nos questionamos se gostaríamos de ter sabido com antecedência. Perdidos no mundo das hipóteses, imaginamos que teríamos nos preparado para receber o Antonio com mais serenidade. Talvez tivéssemos levado menos sustos, talvez o pós-parto tivesse sido menos traumático. Por outro lado, pensamos que a antecipação da dor poderia entupir as nossas cabeças de preocupações além das usuais e que isso apenas tornaria os últimos meses de gravidez ainda mais estressantes. A dúvida nos acompanhará para o resto das nossas vidas. A maior crueldade do tempo não é a sua passagem. É a impossibilidade de voltar.

O fato é que no mesmo dia em que tivemos a maior felicidade do mundo – ver o nosso filho pela primeira vez –, sentimos a maior dor das nossas vidas. Tomamos a nossa facada pelas costas. Meu sangue jorrou imediatamente. Em poucas horas, mergulhei num sofrimento abissal. A Ana, a exemplo de sua amiga da adolescência (que por sinal, sobreviveu ao ferimento), não reagiu ao impacto na mesma hora. Permaneceu impávida, concentrada, sem um pingo de lágrima, tentando fazer o Antonio mamar.

Demorou quinze dias para eu vê-la desabar. Conversávamos sobre nossos novos assuntos, sobre mais uma tentativa frustrada de fazer o Antonio pegar o peito. Ela virou pra mim, olhos já molhados e confessou o inconfessável: “no fundo, a gente sabe que ele tem alguma coisa, né?”. Chorou no meu colo. Choramos juntos. Desejávamos com todas as forças que ele fosse igual aos outros bebês, mas começávamos a perceber havia algo diferente. Choramos por medo de perder as esperanças. Choramos porque, contra a nossa própria vontade, estávamos começando a aceitar.

Não é preciso uma análise muito profunda para descobrir porque a Ana fugiu da dor, porque demorou tanto para extravasar. Quando não se tinha uma confirmação médica, quando não se tinha um exame definitivo, quando tudo não passava de suspeita, chorar era como se estivéssemos traindo o nosso filho. Era como se concordássemos com os prognósticos incertos e pouco animadores dos médicos. Como se estivéssemos abandonando a luta.

Hoje temos o diagnóstico e, ao contrário dos nossos medos de antes, não perdemos a esperança. A diferença é que em vez de a depositarmos na imagem de uma criança normal, apostamos nossas fichas em pequenas conquistas diárias. Aceitamos que o desenvolvimento do Antonio seja a passo de formiga, mas é pra frente que queremos andar. A dor de descobrir que seu filho é especial é imensa, não desejo a ninguém. Mas, pelo menos no meu caso, acho que foi bom não ter sido avisado com antecedência. Pois quando eu fiquei sabendo, já estava irreversivelmente apaixonado pelo meu filho. O cérebro viu que a dor seria grande, ele quis se desesperar. Mas o coração, num raro momento de sensatez, disse: calma, já vai passar.


segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Toys R Us

Uns diriam que é sorte. Outros, que é azar. O fato é que faz algum tempo que trabalho ao lado de um shopping. É só atravessar a rua e entrar.

Na coluna dos prós, posso listar facilmente a presença de três ou quatro lugares decentes para tomar café, uma agência do meu banco, uma lotérica e uma livraria relativamente boa, que além de amenizar o tédio pós-almoço, nunca falha em salvar a minha pele quando esqueço o aniversário de alguém, o que acontece com uma frequência próxima ao sempre.

Porém o lado ruim é muito maior, muito mais sexy e muito mais envolvente. Shopping, que me perdoem os amantes de compras tementes a Deus, é obra do diabo. Pensem comigo. Que outro ser criaria um prédio em que as escadas rolantes fazem você andar quilômetros de um canto ao outro, em ziguezague, muitas vezes ao lado de esposas incapazes de seguir adiante sem parar em frente a cada uma das quatrocentas vitrines no caminho, apenas para você conseguir subir três pisos? Que outro ente do mal seria capaz de elaborar algo tão aterrorizante quanto uma praça de alimentação? Um lugar onde você não só faz refeições sofríveis, mas também é obrigado a disputar espaço, a cotoveladas, com um estranho sentado a 15 centímetros de distância, e que lhe dá um golpe nas costelas toda vez que vai cortar o bife à milanesa. Isso sem contar a presença garantida daquele outro indivíduo em pé atrás de você, com uma bandeja nas mãos, contando quantas batatas fritas faltam para você chispar dali e finalmente ceder o seu lugar para que ele se sente.

Shoppings, idênticos da Malásia ao Malauí, também têm a incrível capacidade de hipnotizar as pessoas, que não se incomodam em perder dias inteiros de viagens preciosas – e dispendiosas – entrando na Zara, na Nike ou em qualquer outra loja, disponível em qualquer canto do mundo, só para conferir. Não estou tirando o meu da reta, não. Somo, em minhas poucas férias, incontáveis horas nas Galeries Lafayette, no Premium Outlet ou mesmo no Shopping Morumbi. Começo sempre com a intenção de não comprar nada, mas o diabo é bom no que faz, e criou o artifício de permitir que a gente só dê uma olhada, ou que a gente experimente só pra ver como é que fica. Termino o dia significativamente mais pobre e momentaneamente mais feliz.

Meu tormento não é tanto as lojas. Elas são, em certa medida (de fato bastante desrespeitada por uma importante parcela da população feminina), necessárias. O problema não são os apitos de senha na praça de alimentação. Nem as escadas rolantes que sempre descem quando quero subir. Nem os desocupados que vagam sem rumo, atentos às promoções, mas completamente desatentos às pessoas, às crianças, aos cadeirantes e a qualquer outro ser que venha na direção contrária. Tudo isso certamente alimenta a minha indignação com shoppings, mas não necessariamente são a causa dela. O que realmente me incomoda, mesmo sendo publicitário e tendo pleno conhecimento dos motivos e dos resultados da prática que me causa ojeriza, é a absurda antecipação das datas comemorativas promovidas pela publicidade e pelas metas de venda, mas materializada, sem exemplo mais ilustrativo, nas decorações de shopping.

Mal começa o mês de novembro e a maldita casa do Papai Noel já está lá, completamente pronta, rodeada por árvores de cinco metros de altura e adereços numa tenebrosa combinação de verde, vermelho, dourado e outra cor de livre escolha. A questão não é somente estética – apesar das lágrimas de muitas crianças, as mais sinceras neste quesito, comprovarem que a imagem de um senhor acima do peso, com maquiagem invariavelmente derretida, bufando sob um cobertor vermelho e coçando sua barba postiça, é geralmente assustadora. Entretanto o maior problema é que a decoração de natal finaliza o ano de forma completamente precipitada. Traz aquela triste sensação de fim de tarde no domingo. E a faz perdurar por dois meses, anunciando dia após dia que você não emagreceu os 10 quilos que prometeu, que você não deu uma virada na sua vida, que este ano está indo embora ordinariamente, como todos os outros anos anteriores, até que ele acabe de fato.

Outra imagem que me dá certa agonia – além dos algodões decorativos simulando neve em um país conhecido pelo seu verão de 40 graus – é a correria nas lojas de brinquedos. Sei o que é amar uma criança. Tenho um filho e mais cinco sobrinhos. A gente entra naquele mar de carrinhos e bonecas, imagina o brilho nos olhos de cada um deles e tem vontade de comprar tudo, em 10 vezes no cartão.

Mas se você me perguntar o brinquedo que eu mais recordo da minha infância, a resposta é uma inocente coleção de caixas de fósforos vazias que a minha avó juntava, para que tivéssemos o com o que brincar quando fizéssemos uma visita. Acredito que o real motivo era garantir que os netos mantivessem as mãos sujas nas caixinhas, em vez de carimbar as paredes brancas. Que seja. Missão cumprida. Pois eu ficava horas montando trens, caminhões, cidades e tudo o que minha mente conseguia inventar com aquelas caixas com cheiro de fósforo. Até hoje, quando sinto aquele cheiro, a lembrança da minha avó volta para me abraçar.

No natal do ano passado aconteceu algo parecido. Os pais, os avós e os tios dos meus sobrinhos, eu inclusive, estavámos todos muito preocupados em dar bons presentes, realizar os desejos, seguir à risca os pedidos das cartinhas. Uma das minhas irmãs, num misto de criatividade e praticidade, decidiu comprar algo mais simples e barato: boias de piscina, em formato de bote e baleia. A alegria das crianças foi tanta, que tive que encher as boias imediatamente, mesmo que eles não tivessem permissão para nadar àquela hora da noite. Brincaram no barco e na baleia inflável até adormecerem. Deixaram os brinquedos à pilha de lado. Preferiram os movidos a imaginação.

Quando descobri que seria pai de um menino, o primeiro pensamento que me veio à cabeça foi que teria companhia pra brincar. Projetei o Antonio com dois, três anos, correndo atrás de bola, andando de bicicleta, pulando na cama, deixando a casa um caos, levando brinquedos para lá e para cá. Inúmeras vezes imaginei o Antonio entrando no meu quarto, de fralda e camiseta, com algum cacareco nas mãos, às 7 da manhã do domingo, me convidando, com chupeta e sorriso no rosto, para acordar e brincar.

O Antonio, apesar de adorar uma bagunça e ter começado a se interessar por brinquedos com luzes e barulhos, até hoje nunca buscou, como seria esperado para um bebê de dez meses, um brinquedo com as mãos. A coordenação motora fina é uma das suas maiores dificuldades. E tarefas simples como pegar, segurar e soltar são imensos desafios. Por causa do reflexo nato de fechar as mãos, ele até consegue prender algum brinquedo leve por algum tempo, mas logo depois o solta, sem uma relação clara de interesse e desinteresse, muito mais pelo puro instinto de voltar abrir as mãos.

Talvez por isso, as brincadeiras que mais o divertem são predominantemente sensoriais. Ele adora quando o pego no colo e faço aviãozinho. Morre de rir quando imito o relinchar de um cavalo. Fica hipnotizado quando saímos para passear, olhando o contraste entre o céu e as árvores. Relaxa, sorridente, quando sente o vento no rosto. Bate as perninhas sem parar quando nos arriscamos a nadar.

À medida que o natal se aproxima e verdadeiras multidões enrijecem as pernocas e emagrecem as contas bancárias dentro dos shoppings, eu me manterei fiel aos meus três ou quatro lugares decentes para tomar café em vez de me perder nas lojas de brinquedos. É claro que darei alguma coisa brilhante ou barulhenta para o Antonio. É claro que ficarei muito contente com os presentes que ele receber do Papai Noel. De alguma maneira, mesmo que não seja da forma clássica, esses brinquedos contribuirão para o desenvolvimento dele, disso não tenho dúvida. Mas além de ajudá-lo a desembrulhar os pacotes que o esperam debaixo da árvore, vou separar o fim de ano para ficar horas com o Antonio na piscina. Vamos abrir uma companhia aérea de tanto aviãozinho que faremos juntos. Vamos fazer piquenique embaixo de uma árvore bem grande. Vou esticar uma toalha macia na grama para ele poder rolar.

Tenho certeza que é esse tipo de presente que ele quer ganhar.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Fala garoto

Minha mãe fala pelos cotovelos. Pelos dois ao mesmo tempo, se você deixar. A ciência ainda não comprovou que matraca sem freio é hereditária, mas não restam dúvidas que foi daí que eu herdei meu apreço por discursos, meu talento para dar com a língua nos dentes e minha necessidade de puxar papo com transeuntes de elevador.

Cresci em uma casa onde tudo era discutido, do local das próximas férias de verão a quem ficaria com o ventilador. Nunca experimentei a figura do pai lacônico, mirando de soslaio os filhos cabisbaixos e os obrigando a chamá-lo de senhor. Na nossa mesa a conversa rolava solta. E à medida que os anos passavam, fui aprendendo os benefícios de me tornar um homem familiarizado com as palavras. Arranjei até uma meia dúzia para convencer algumas garotas a me beijar.

Dizem que todo homem procura uma mulher aos moldes da própria mãe. E quando decidi casar com a Ana, a comparação foi inevitável. Ambas gostavam de moda. Ambas eram extrovertidas. Ambas falavam sem parar. Porém, minha mulher escondia uma mania, uma diferença fundamental, que fazia qualquer semelhança entre as duas se dissipar. Dentro de casa, na vida a dois, a Ana usa o silêncio para se comunicar.

Em nossos desentendimentos não há discussão. Quando algo a desaponta, ela simplesmente se fecha, feito flor. Eu perco o meu direito a beijos por tempo indeterminado, em uma espécie de castigo, sem direito a falar. Até que depois de algum tempo, sem antecipação, ela encosta o seu pé no meu, embaixo do cobertor, e ganho o meu beijo. Não é preciso falar, está dito nos olhos. O silêncio acabou. E não deixou palavras para machucar.

Desse diálogo mudo nasceu um bebê especial, em todos os sentidos que essa palavra pode ter. O curioso é que a síndrome do nosso filho não tem nome, não há um termo que possamos usar. E dos vários túneis escuros que estamos tendo que explorar, um dos que mais me assustam é a possibilidade do Antonio não falar.

Desde que comecei a escrever sobre a nossa vida, tenho recebido diversos relatos de pais de crianças que contrariam as previsões médicas, superam todas as expectativas e aprendem a andar, a comer sozinhas ou a usar a fala para se comunicar. Esse é o melhor apoio que podemos receber. A experiência de quem viveu na pele e sabe que esse rio é possível de atravessar. Enquanto não chega a idade de dizer papai e mamãe, o melhor que temos a fazer é falar com o Antonio o tempo inteiro, pronunciando as palavras em bom som, em bom português e a uma distância que ele consiga enxergar.

Não sei por onde perambulamos antes de vir a esse mundo. Não sei se temos a oportunidade de escolher a família na qual vamos nascer. Apenas sei que, se de fato tivermos essa opção, o Antonio fez a sua com inteligência. Escolheu um pai falante como a avó e uma mãe fluente em silêncios. Com palavras ou sem palavras, ele sempre terá alguém para conversar.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Barulhos para ler - Noises to read

Querido filho, meu querido Antonio, o papai tem gastado horas, talvez já sejam dias, escrevendo para todo mundo, contando a vida para gente que a gente nem conhece, e, atrapalhado com esses e outros afazeres, tenho esquecido de escrever para você.

Hoje descobrimos que você não escuta de tudo. Que uma palavra como “sapato” pode soar como “apato” e que talvez, ainda não é certo, teremos que moldar um aparelho de audição para ajudar os seus ouvidos a fazerem o seu dever.

O papai disse aos quatro ventos que não se importaria com isso. Tentei me convencer de que uma deficiência auditiva seria o menor dos problemas, ainda mais uma perda moderada, como parece ser o seu caso. Mas a verdade é que fiquei triste, pois como pai, desejo dar-te asas. E sinto como se tivessem tirado algumas penas dessas asas que estou fabricando para você.

Por isso, meu filho, como não tenho certeza do que você anda ouvindo, resolvi descrever alguns sons que me fazem muito feliz. São ruídos que estão à nossa volta e que espero um dia você possa escutar por conta própria. Até lá, fica este pequeno registro. Um texto para ouvir. Barulhos para ler.

Você gargalha à noite. É imprevisível, como ver uma estrela cadente. E assim como nas raras vezes em que avisto um rastro de luz no céu, faço um pedido: ouvi-lo gargalhar novamente. Este fenômeno só acontece quando você está no colo, em sono profundo e com cabeça atirada sobre algum dos meus doloridos ombros. Sem aviso prévio, você solta um riso moleque, que mais parece um soluço, e sinto seu peito chacoalhar colado ao meu. Tudo se acaba numa fração de segundo, mas deixa aquela pergunta no ar: em que será que você está pensando? Imaginando mil histórias, ajeito o cobertor e aguento o seu peso por mais alguns minutos. Sonho bom não se deve interromper.

Você fala com suas chupetas. Na verdade, briga com as pobres coitadas. Às vezes, quando colocamos uma destas pequenas maravilhas na sua boca, você imediatamente a agarra com as duas mãos e, num ataque paradoxal, tenta arrancá-la dali enquanto a morde com todas as forças. Outra opção bastante comum é tentar engolir a vítima da vez por inteiro, se possível com alguns dos seus próprios dedos de sobremesa. Enquanto a luta se desenrola, sem chance alguma de vitória para a chupeta, você cantarola algo como nhóing, nhóing, nhóing, pausa, nhóing, nhóing, nhóing, pausa, nhóing, nhóing, nhóing, e assim por diante, até que se canse de maltratar a sua presa, como gato que deixa o rato de lado, todo arranhado e babado, em busca de algo novo para se divertir.

Você ronca. Sei que é um barulho pouco ortodoxo para se gostar, mas poucas coisas me dão tanta tranquilidade quanto estar distraído com TV, esperando você dormir, e de repente perceber que você não só está meio derretido na sua cadeira de balanço, mas também ressona como um urso em plena hibernação. É hipnótico. Paro de assistir o que estou vendo para assistir você.

Fora esses pequenos sons, meu filho, que parecem ordinários aos ouvidos, mas são preciosos para a alma, há pouca coisa que consideraria fundamental para viver. Desejo que você consiga e goste de escutar música. Desejo que perceba alarmes, buzinas e outros alertas que possam protegê-lo de algum perigo. E espero que algum dia você compreenda e repita os milhares de pa-pai que digo diariamente para você.

E quando chegar o seu aparelho auditivo, que vai abrir seus ouvidos sem filtros para sinfonias e agressões, desejo que continue surdo como uma pedra para eventuais comentários preconceituosos. A vida é dura, filhote, a gente ouve cada coisa. Não sei se estou preparado para te ver sofrer.

Mas cada coisa na sua hora. Agora o nosso foco são os sons dos animais e as cantigas de roda. Perdoe quando eu errar a letra. Perdoe quando eu desafinar. E tenha certeza, meu filho, que mesmo que você não escute nada, eu sempre cantarei para você.


Noises to read

Dear son, dear Antonio, daddy has spent hours, maybe days, writing to everybody, telling about our life to people that we don’t even know, and, jumbled by those and other things to do, I have been forgetting to write to you.

Today we found out that you can’t listen to everything. That a word as “cat” may sound as “at” and that maybe, it is not certain yet, we we’ll have to order a hearing device to help your ears do their job.

Daddy told everyone that he wouldn’t mind that. I tried to convince myself that a hearing deficiency would be the smallest of the problems, even so a moderate loss, as it appears to be your case. But the truth is that I got sad, because as a father, I wish to give you wings. And I feel like someone ripped off some feathers of those wings that I’m building for you.

That’s why, my son, as I’m not sure of what you have been hearing, I decided to describe some of the sounds that make me very happy. They are noises that are around us and that I hope that some day you can listen by yourself. Until then, here is this little list. A text made for listening. Noises to read.

You laugh at night. It is unpredictable, as seeing a shooting star. And as for the rare times that I see a flash of light up in the sky, I make a wish: to hear you laugh again. This phenomenon happens only when you are in my lap, in deep sleep and with your head thrown over one of my sore shoulders. Without previous warning, you let out a childish laughter, that seems more likely to be a hiccup, and I feel your chest wiggle next to mine. It all ends in a fraction of a second, but leaves that question up in the air: “I wonder, what are you thinking about?”. Imagining a thousand stories, I straighten the blanket and keep standing your weight for a few more minutes. Good dreams must not be interrupted.

You talk to your pacifiers. In fact, you argue with them. Sometimes, when we put some of those little wonders in your mouth, you immediately grab it with both hands, and in a paradoxal attack, try to rip it off while bitting with all of your strenght. The other pretty common option is trying to swallow the victim of the time at its whole, if possible with some of your fingers for dessert. While the struggle unwind, with no chance of winning to the pacifier, whatsoever, you hum something like “nhoing”, “nhoing”, “nhoing”, pause, “nhoing”, “nhoing”, “nhoing”, pause, “nhoing”, “nhoing”, “nhoing”, and so on, until you are tired of abusing your prey, like the cat that leaves the mouse aside, all scratched and drooled, in search of something new for fun.

You snore. I know it’s an unorthodox sound to like, but few things give me more tranquility as to be distracted by the TV, waiting for you to sleep, and suddenly realize that you are not only half-melted on your rocking chair, but also ressonates like a bear in full hibernation. It is hypnotic. I quit watching whatever is going on the TV just to watch you.

Aside from those sounds, my son, that seem ordinary to the ears, but are precious to the soul, that are few things that I consider fundamental in life. I wish that you be able to listen to some music and enjoy it. I wish you can perceive alarms, honks and other alerts that can protect you from some danger. And I hope that someday you can understand and repeat the word “daddy” that I say everyday to you.

And when your hearing device arrives, and open your ears to simphonies and aggressions, I wish that you keep deaf to prejudice comments. Life is tough, kiddo, we have to listen to unbelievable things. I don’t know if I am ready to watch you suffer.

But everything has its right time. Now our focus is imitating the sounds of animals and singing lullabies. Forgive me when I get the lyrics wrong. Forgive me when I go out of key. And please be sure, my son, that even if you can’t ever listen to a single word, I will always sing to you.


Tradução: Alexandre Marcílio

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Acredite ou não

Cristãos, judeus, muçulmanos, ateus, macumbeiros, ou seja lá qual for seu deus, saquem suas armas. A guerra vai começar. As regras – sim, há regras – são simples. Primeiramente, você defende o que acredita, sem gaguejar e com convicção febril. Se for do tipo que gosta de holofotes, pode adicionar algumas tiradas irônicas aqui e ali, como se fosse um comediante de stand up. O importante é manter aquele ar pretensiosamente despretensioso e metralhar piadas ácidas e ofensivas sempre que possível. Seu oponente ficará no chão e seu rebanho, às gargalhadas, o presenteará com palmas, assovios e, quem sabe, até uma ovação em pé. Em seguida, na vez do outro atacar com sua fé absurda, para não dizer estúpida, finja que ouve atentamente a cada argumento, quando na verdade você procura por pontos fracos, com seu faro aguçado para incoerências teóricas, que serão estrategicamente usadas contra o pobre coitado na sua devida hora, na sua tréplica.

Vence quem insistir por mais tempo, já que a persuasão neste tipo de batalha é mera alegoria abstrata e nunca poderá ser alcançada. É fundamental que os cumprimentos iniciais sejam cordiais, como em todas as artes marciais, mas uma vez no tatame, vale humilhar, cuspir, chutar o saco, sequestrar, estuprar, dar tiro na cabeça, degolar e, se necessário, como fiéis guerreiros que somos, mesmo que seja contra todos os deuses em vez de a favor de um, podemos até lançar mão técnicas mais sofisticadas, como cobrir o próprio corpo de bombas ativadas e partir voluntariamente para o céu, ou inferno, caso acreditemos nessas coisas, em defesa da nossa causa e honra. Sim. Vale terminar com os miolos num canto e o corpo no outro. Só não vale dar o braço a torcer.

Frequentemente abro arquivos que chegam a mim por email, com fotos do pôr do sol e de montanhas nevadas, legendadas por incansáveis repetições das maravilhas criadas por Deus. Com um pouco mais de interesse, mas ainda pouco, leio artigos que me chegam a respeito da ciência e da comprovação, se não empírica, por óbvia dedução, da impossibilidade da existência de uma divindade suprema, não importa a religião. Meu cérebro decodifica e compreende sem nenhuma falha a informação que detemos até aqui. Porém minha mente, por livre e espontânea vontade, escolhe um dos muitos lados existentes, sem grandes preocupações com conceitos inexatos, como o que é certo ou o que é errado, e nos momentos em que acho que devo, volto minha atenção para dentro e busco auxílio, conforto e um pouco de paz na minha espiritualidade. Mudam os nomes, mudam os livros, mas as religiões e as filosofias de vida, como o ateísmo, não passam de ideias pelas quais nos apaixonamos. E com as quais escolhemos viver.

Quem gosta de futebol sabe muito bem o que é isso. Por influência dos parentes, dos amigos ou de um craque fazedor de gols inesquecíveis, logo nos primeiros anos escolhemos uma camisa para amar. A bandeira vira manto sagrado. O hino vira oração. Compramos suvenires. E como devotos em procissão, vamos todos os domingos ao nosso templo, ou para frente da televisão, para cantar nosso amor por aquele time, para fazer nossos rituais semanais de veneração e para cultuar nossos santos, que às vezes fazem milagres com um passe errado, e acabam salvando o jogo, no fim do segundo tempo, para alívio e alegria dos nossos corações. No dia seguinte, com a alma lavada, mas suja de maldade, humilhamos seres humanos que na maioria dos dias consideramos amigos, mas que hoje merecem ser punidos por vestirem verde em vez de vermelho. Os mais extremistas, uma minoria, assim como nas religiões, julgam-se em guerra santa e, num transe passional, resolvem evangelizar seus rivais à força, nem que seja com socos na boca e chutes na nuca.

Se clubes de futebol, que somam pouco mais de cem anos, são capazes de despertar o melhor e o pior de nós, imagine o que podem fazer conceitos como Deus ou Alá, que há milênios atracaram em nossas cabeças até então quase inabitadas, exterminaram os neurônios mais rebeldes, catequizaram os mais dóceis e, dia após dia, os obrigaram a podar nossos prazeres e a plantar culpas, até acreditarmos que prazer é pecado e culpa é redenção, uma ideia que balança, balança, mas não caiu até os dias de hoje.

Entretanto, se tempo de atuação for a medida de força e poder, os deuses da mitologia grega deveriam atrair mais gente que final de copa do mundo. Há inclusive o próprio deus do tempo, Chronos, que neste caso reinaria absoluto, provavelmente portando um Rolex dourado, maior que o Big Ben, em um dos pulsos. O tempo sim é um deus que vale a pena temer. É mais cruel do que todos os outros deuses já inventados pela imaginação do homem. E pra piorar, tem o cansativo hábito de nunca parar, nem que você peça muito, mesmo que você queira dar só uma palavrinha num momento de desespero.

O tempo é mesmo um deus impiedoso. Ontem, por exemplo, o Antonio fez nove meses. Já é mais vida fora da barriga do que dentro dela. E pra variar, por um lapso de atenção, por mais que tentasse aproveitar cada segundo, não vi o maldito do tempo passar. E olha que fiquei incontáveis horas de vigília, acordado de madrugada, enquanto meu filho decidia se chorava, se mamava ou se, em noites de sorte, eventualmente dormia esparramado no meu colo. Eu, cambaleando a cabeça de sono, não percebi que Chronos estava o tempo todo ali, fazendo o dia amanhecer e o corpo do Antonio esticar em progressão geométrica.

Nove meses. Eu deveria ter imaginado que o tempo suficiente para formar uma nova vida deveria ser mais do que o bastante para transformar a minha. Aprendi a trocar fraldas, a montar e desmontar carrinhos, a dormir com os olhos fechados e os ouvidos abertos, a distinguir choro de dor, de manha e de fome. Perdi cabelos, ganhei quilos. Depois perdi os quilos, mas infelizmente não ganhei os cabelos de volta. Caí de paraquedas em um mundo em que microretrognatia e traqueomalácia são palavras comuns. E para minha surpresa, em poucos meses estava fluente na nova língua.

Apesar de eu, como todos os pais, estar sempre com uma sensação de falta de tempo, esse deus maniqueísta, bom quando você não precisa dele, mau quando você quer dormir mais 10 minutos, faz questão de deixar seus rastros. As roupas do Antonio apertando, as papinhas engrossando, o peso aumentando, tudo é evidência clara de que o tempo está passando. Porém Chronos deve ter aprontado alguma para Zeus ou outro superior na hierarquia, porque lá em casa ele não tem o direito de fazer o que bem quiser.

O tempo, que em seis meses consegue colocar a maioria dos bebês para sentar, ainda não conquistou essa alegria com o Antonio. Engatinhar e andar também são projetos para o futuro, e nem ele, o tempo, sabe dizer ao certo quando essas habilidades vão começar a se manifestar. Falar, comer sólidos, ler, escrever, correr. Incógnitas que estão tão lá pra frente que o próprio tempo ainda não tirou um tempo para pensar nelas. A passagem do tempo, que sempre se exibiu como solução para tudo, está mais perdida que caipira em cidade grande. E à medida que os meses se vão, e alguns atrasos se mantêm, a Ana e eu estamos tendo que colocar em prática um conselho que nos deram logo que o Antonio nasceu: trocar a palavra expectativa por esperança.

Como a maioria das religiões nos faz crer, o céu é o limite. Minha mulher e eu – e mais um monte de familiares, amigos e médicos – estamos fazendo todo o possível para ajudar o Antonio a crescer e a se desenvolver, no tempo dele, do jeito que for possível para ele. Às vezes é cansativo, às vezes é frustrante, mas volta e meia a gente é surpreendido com uma nova conquista, como vê-lo girar sozinho na cama para dormir de bruços. Uns dirão que foi graças a Deus. Outros dirão que era só uma questão de tempo. Não me importa. A emoção de cada vitória do Antonio é a mesma. E é motivo suficiente para eu acreditar que ele é capaz de mais.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011