terça-feira, 30 de outubro de 2012

Mudança


Estou de mudança. Literalmente. Caixas, caminhão e centenas de ligações para acionar o gás, a luz, o telefone, a internet, a TV por assinatura. Os próximos dias são de transição. Fico com duas casas e, ao mesmo tempo, meio sem lar. As roupas estão em um endereço, os controles remotos já estão em outro. O filho está em um terceiro, a casa da avó. A mulher, merecidamente, viajando de férias com as parentas. Sozinho, vou escrevendo as últimas linhas de uma história que foi muito mais intensa do que imaginei: a história da casa em que a Ana e eu iniciamos a nossa família. O lugar em que geramos uma vida, sem saber que na verdade estávamos gerando a virada das nossas próprias vidas.

Há alguns dias li na internet uma carta que teve enorme repercussão. Foi escrita por John Franklin Stephens, um norte-americano com síndrome de Down, em resposta à atitude de Ann Coulter, uma partidária republicana, que havia se referido ao democrata Barack Obama como “retardado” em uma rede social. Com extrema elegância, o autor da carta disserta sobre a inadequação do termo, não apenas para definir o político em questão, mas também para se referir a qualquer pessoa. E conclui com um convite absolutamente gentil para que a agressora visite e conheça o time de atletas especiais do qual ele, Stephens, faz parte. “Veja se você consegue sair com o seu coração inalterado”, desafia o rapaz.

Talvez ele não tenha sucesso com Ann Coulter, porém sem dúvida já amoleceu milhares de outros corações. A carta é bem escrita, contém uma ironia inteligente e seria admirável mesmo que o autor não tivesse deficiência alguma. Disfarçada de discussão sobre o uso da palavra “retardado”, a carta é um manifesto em favor do respeito às pessoas, de forma plena e universal, seja político, seja negro, seja deficiente físico ou intelectual.

Li, gostei, espalhei e achei que a carta seria tema único do post. Porém, para minha surpresa, a semana ainda me reservava mais um divertido ataque a diversos preconceitos, em especial o preconceito contra pessoas com deficiências físicas. Por um milagre da minha circunstancial vida de “pãe” e mestre-de-obras, arranjei um jeito de ir ao cinema e ver “Intocáveis”, filme que tanto me recomendavam. A esta altura, acredito ser o último terráqueo a conhecer a história do imigrante pobre e negro que se tornou cuidador de um homem rico e tetraplégico, e o faz da maneira menos convencional possível. E, como muitos haviam me prometido, saí do cinema com um sorriso por dentro.

Para mim, o especial da história é o jovem não fingir que não vê. Ele se recusa a respeitar os códigos sociais hipócritas, os quais não sei se desvaloriza ou se simplesmente não compreende. Quando vê algo diferente, como um homem sem os movimentos, ou uma mulher muito bonita ou uma pintura ridícula que vale 30 mil euros, o rapaz arregala os olhos, faz perguntas e, diferentemente da maioria, verbaliza a sua opinião mais sincera sobre o assunto. Ri do que é ridículo, lamenta o que é triste e toca a vida sem se fazer de vítima, sem ter pena de si, nem dos outros.

Quando algo triste e inesperado acontece, é quase impossível não sentir pena de quem sofreu o baque. É difícil olhar para uma deficiência causada por um acidente, por exemplo, sem refletir sobre o sofrimento daquela pessoa, ou sem se deixar abater pelas dificuldades daquela nova situação. Acidentes com sequelas, síndromes genéticas, doenças terminais, deficiências físicas ou intelectuais são sim assuntos muito complexos de absorver, especialmente para quem nunca os teve por perto. Em um primeiro momento, a pena é um sentimento involuntário e natural. E não devemos nos culpar por tê-la.

O problema é que a pena é como uma catarata nos olhos: com o tempo, vai cegando. Quando persistente, a pena se disfarça de sentimentos como ternura e compreensão, mas na verdade é indício de preconceito e não-aceitação. Alimentar a pena é acorrentar o sujeito ao estigma do coitado e eternizá-lo na posição de “café-com-leite” da vida. Ter pena é pensar que os outros não poderão mais correr, casar, comer, viajar, transar, dançar, rir, chorar, trabalhar. Ter pena é acreditar que após uma adversidade é impossível ser feliz.

Quando estou com o Antonio nas ruas, recebo muitos sorrisos bondosos. As crianças, por outro lado, arregalam os olhos, franzem a testa, fazem caretas, às vezes voltam alguns passos para olhar mais de perto para o rosto do meu filho. É claro que isto me agride por dentro, mas compreendo. O Antonio chama atenção. É natural que os pequenos o explorem. O que me incomoda, entretanto, é a reação de alguns pais, quando percebem que meu filho é especial. Muitas vezes, por um reflexo automático, esforçando-se para manter o sorriso no rosto, puxam de leve os seus próprios filhos pelos braços, afastando-os do Antonio, interrompendo qualquer possibilidade de interação. (Daí, pela minha interpretação, a total adequação do título do filme “Intocáveis” – a primeira ação que o preconceito elimina é o toque.)

Porém, aos poucos, espalhando informação, aprimorando a minha reação, vejo o cenário em minha volta mudar. Sinto amigos, familiares e conhecidos seguros ao interagirem comigo, com a Ana e principalmente com o Antonio. Vejo desconhecidos mais confortáveis em perguntar o que ele tem, e agir naturalmente após uma ou duas respostas básicas. Empacotando nossos pertences para levar à casa nova, vou relembrando o quanto cresci – o quanto crescemos – com a chegada do Tom, e como as coisas se acalmaram desde então. 

O pai sofrido que fui há alguns meses ficará nesta casa antiga, junto com outras lembranças, pois já não existe mais. O que minha família passou deixou sequelas, formou cicatriz, mas nos transformou em pessoas mais capazes de lidar com os desafios da vida, que são muitos. E percebo que, assim como o garoto com síndrome de Down que escreveu a carta, assim como cuidador marroquino e o deficiente francês que inspiraram o roteiro de "Intocáveis", assim como o meu filho Antonio, cada vez mais pessoas estão quebrando preconceitos e transformando as pessoas em seu redor. Pode soar ingênuo, pode soar demasiado esperançoso, mas acho que o mundo também está de mudança. Para melhor.


segunda-feira, 8 de outubro de 2012

(des) Culpa

Prólogo

Inspirado pelo clima de eleições políticas, na semana passada prometi que até sexta-feira escreveria algo, não cumpri, mas vou deixar por isto mesmo, na esperança de que meu eleitorado em breve se esqueça, ou que tenha preguiça de reclamar seus direitos, por ter coisas mais importantes a fazer, como, por exemplo, assistir à derrocada da Carminha em Avenida Brasil.

Sim, apesar do tom frio e do olhar sereno, é claro que sinto algum peso na consciência por este desvio de caráter, como sentem, sem dúvida, os políticos que prometem o éden na campanha e fazem o indizível depois de eleitos. Acredito até que eles só conseguem dormir porque a recompensa de fazer o indizível no poder público inclui, entre outros prêmios, a possibilidade de adquirir imóveis espetaculares à vista, a habilidade de conquistar mulheres 20 anos mais novas e a certeza de desfrutar da companhia delas em seus lençois de algodão egípcio 1500 fios. Exceto o tamanho do imóvel, a diferença de idade da mulher e a qualidade da roupa de cama, estou no mesmo ponto que eles: certo de estar errado, fico somente esperando a culpa passar.

O pior é que a culpa passa. E as pessoas esquecem. E o tempo apaga. Ou distorce. Esta é a minha esperança. Tomara que os leitores deste blog esqueçam a segunda passada, “a segunda em branco”, e que me reelejam, já nesta semana, como alguém merecedor de sua atenção. Afinal, em time que está ganhando não se mexe. E tem muita promessa vazia por aí ganhando eleição.

Sigamos ao texto da semana de fato. Se não nas urnas, ao menos aqui, chega de embromação.

*

Texto de fato

Há algum tempo eu cultivava o hábito de dizer que tinha nascido uns vinte, trinta anos atrasado. Argumentava que o tempo andava rápido demais para mim. Dizia que gostaria de ter trabalhado no tempo da máquina de escrever, das cópias em papel carbono e das mensagens por carta, que demoravam para chegar. É claro que uso internet, avião, celular. Mas a voz que habita a minha cabeça – aquela que a gente escuta quando lê um livro, aquela que fala as verdades que não saem da boca – volta e meia repete que eu viveria melhor se o mundo girasse um pouco mais devagar.

É estranho viver na contramão da própria geração. Estou sempre rodeado de gente pré-adaptada à próxima invenção, seja inovação tecnológica, seja descoberta científica, seja o que for. Enquanto eu, olhando para o teto do meu quarto sem TV, sorrio com o canto da boca ao imaginar uma biblioteca de madeira, cheia de livros de papel, e muitas tardes à toa, para aproveitá-la. 

Assim está bom
Ainda no campo da diversão, ignoro solenemente qualquer tipo de vídeo game; assim como a minha avó, prefiro um carteado. Meu computador não é de última geração e serve somente para eu escrever e me comunicar, não mais do que um papel em branco, ou um telefone bem equipado. Até aproveito os recursos dos dias atuais, mas a minha alma se sente residente de outro tempo. Não sei exatamente qual, mas sei que é no passado.

Como diz um ditado popular, é preciso ter cuidado com o que se deseja. Eu e minha vontade de arrastar os dias fomos ouvidos e premiados. Tive um filho há quase dois anos e ele se comporta como se tivesse apenas seis meses de idade. Recém aprendeu a sentar, há pouco começou a me reconhecer, posso até imaginar Deus (ou a natureza, ou seja lá quem fabrica a vida) satisfeito consigo mesmo: “Este foi feito sob medida. Este saiu exatamente como o encomendado.”

E cá estou eu, vivendo um paradoxo existencial. Ansiei por um ritmo mais lento em tudo na vida; e agora, que meu filho atende este desejo ao extremo, sinto-me absolutamente angustiado.

Não é culpa do Antonio, é preciso dizer. A seu tempo, ele tem feito progressos imensos. Come bem, dorme com regularidade, cresce e engorda dentro da média das crianças e bem acima das expectativas médicas. 

Em termos de desenvolvimento motor, a todo tempo faz um imenso esforço para equilibrar a cabeça, ou para alinhar o tronco quando se senta; tenta ficar sem as mãos apoiadas no chão; estica-se para pegar os brinquedos; recoloca-se incessantemente na “posição do gato”, de quatro, mesmo sem ainda conseguir mover as mãos ou as pernas para engatinhar; tem cada vez mais levado os brinquedos à boca para explorá-los; mesmo que involuntariamente e sem razão específica, bate palminhas; firma as pernas quando o colocamos em pé; bate as mãos na água; aceita todo tipo de papinhas e dá sinais de que algum dia poderá conseguir mastigar a comida. 

No desenvolvimento cognitivo, o Antonio vai mais devagar, mas também evolui. Aos poucos, ele tem entendido o que é “ir para o banho”; já olha discretamente quando chamamos o seu nome; tem balbuciado alguns sons com maior frequência; acompanha desenhos e outros programas na televisão; ri em situações específicas; desenvolve afeto especial por alguns brinquedos e começa a fazer “escolhas” quando oferecemos mais de uma opção. Dentro dos seus próprios limites, o Antonio raramente demonstra preguiça ou malcriação nas suas atitudes. Ao contrário, sentimos que ele se esforça. E que aos poucos está despertando para o mundo à sua volta. Com muita frequência nos impressiona com alguma nova atitude. Com mais frequência ainda, faz algo engraçado.

Ou seja, a culpa é minha, pois mesmo sabendo que não posso consertar o problema do meu filho, insisto em me encher de expectativas. Repito “papai” de um jeito irritante para o Antonio, tentando enfiar ouvido adentro uma informação que talvez o cérebro dele esteja verde demais para interpretar. Procuro identificar padrões em todos os comportamentos dele, para apenas poder batizá-los de aprendizado, de habilidade conquistada. E desejo, incontrolavelmente, que o Antonio acompanhe um pouco mais o tempo, este apressado, este maldito, que insiste em deixar para trás não só a minha alma, mas agora também o melhor fruto dela, que é o meu filho.

De vez em quando vejo alguém dizer que as crianças de hoje em dia são muito espertas, que já nascem sabendo mexer em computador e passar os dedos nas telas touch screen. Adoraria engrossar o coro, mas não posso. Meu filho não nasceu esperto. E só agora começa a entender a utilidade das próprias mãos. Acho que minha constituição antiquada não passou para ele informações suficientes. Acho que respirei ácaros demais nas minhas bibliotecas imaginárias e prejudiquei a herança genética dos meus filhos. Agora sério: acho que minha mulher e eu desconfiaremos pelo resto das nossas vidas se fomos culpados pelo o que aconteceu ao Antonio.

Os exames realizados até agora indicam que não. A medicina acredita que não, que poderia ter acontecido a qualquer casal. Ainda assim, quando vejo meu filho lutar para fazer o que deveria ser instintivo, preciso admitir que muitas vezes me questiono. “Se a Ana tivesse engravidado no dia seguinte, teria sido diferente?” E a culpa volta, porque pensar desta maneira não leva a lugar nenhum. Certo de estar errado, fico esperando a culpa passar.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Aviso

Por desorganização do autor e por conta de muito trabalho, o post desta semana sairá até sexta. Desculpe o atraso.