segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Bahia

1. No avião, a cada turbulência, o Antonio caía na gargalhada. 2. Me entupi de protetor, repassei no meio do dia, mas, como sempre, já estou vermelho. 3. A internet é péssima, mas prometo que dou um jeito de postar durante a semana. Abraço a todos, Fábio

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Top five

“Parada de fim de ano. Volto no dia 11. Feliz 2012 para todos nós.”

Esta frase foi escrita pelo jornalista e escritor Daniel Piza, em seu blog, no site do jornal O Estado de São Paulo, no dia 28 de dezembro do ano passado. Dois dias depois, Piza faleceu devido a um AVC. Assim, sem mais nem menos. Sem chances de evitar, sem chances de prever. Uma interrupção abrupta da vida: um crime. Poderia ser eu, poderia ser você.

Sempre tive uma péssima relação com a morte. Entendo que é um processo natural, mas invariavelmente fico com um sentimento de injustiça, como se fosse cedo demais, ou cruel demais, dependendo do dia ou da forma que a maldita resolva aparecer. Por mais que o próprio moribundo aceite que chegou a sua hora, o que se faz com quem fica para trás? Morte é pessoal e intransferível, mas parece que leva um pouco – às vezes muito­ – de quem continua a viver.

Há alguns dias circulou pela internet uma carta que um inglês, vítima de câncer, escreveu para os filhos antes de morrer. As crianças eram pequenas e ele sabia que tinha pouco tempo pela frente. Então deixou diversos conselhos por escrito, para que seus filhos lessem quando pudessem compreender – e para que soubessem um pouco mais dos valores deste pai que mal puderam conhecer.

A carta é emocionante. Não só pela ética e pelo carinho transmitidos a cada palavra, mas principalmente pelo paradoxo que aquele homem viveu quando teve a própria morte anunciada. Ao mesmo tempo em que estava indubitavelmente triste pela consciência do próprio fim, soube ver a oportunidade que tinha nas mãos e agarrou com todas as forças o privilégio de poder se despedir. Disse tudo o que precisava ser dito. Melhor, deixou por escrito. Com aquelas poucas linhas, marcou seus filhos para o resto da vida, mesmo sem poder estar presente. Faleceu com um motivo a menos para se arrepender.

Também no fim do ano passado, em outro texto que chegou a mim pela internet, Frei Betto mencionou uma australiana que trabalhou com doentes terminais e que, com base nesse convívio, elencou os cinco principais arrependimentos de quem está perto da morte. São eles: 

1. Gostaria de ter tido a coragem de viver uma vida verdadeira para mim, e não a que os outros esperavam de mim.
2. Gostaria de não ter trabalhado tanto.
3. Gostaria de ter tido a oportunidade de expressar meus sentimentos.
4. Gostaria de ter tido mais contato com meus amigos.
5. Gostaria de ter tido a coragem de me dar o direito de ser feliz.

Fiquei um bom tempo refletindo sobre o terceiro ponto: “gostaria de ter tido a oportunidade de expressar meus sentimentos.” O que nos impede? Minha hipótese é que muitos de nós não estamos acostumados a dizer o que sentimos porque nos achamos isentos da efemeridade da vida. Mudos, vamos tomando o não dito por dito, perpetuando situações mal resolvidas, deixando emoções subentendidas, até que um dia a vida cobra a conta. Medalha de bronze. Terceiro maior remorso na hora de bater as botas.

Casos como o de Daniel Piza são brutalmente inesperados, por isso nos assustam e nos entristecem tanto. Por outro lado, o anúncio antecipado da própria morte, como o do pai inglês, também é um presente bastante amargo de se receber. Como falei, minha relação com a morte é a pior possível. Todas as hipóteses são ruins. Sessenta, oitenta, cem: qualquer idade é pouco para tudo o que tenho vontade de fazer.

Porém, se quisermos fazer uma leitura menos mórbida, a vulnerabilidade do ser humano e a iminência da morte são também uma oportunidade de renascimento. Há poucos dias um amigo se livrou de um acidente de carro impressionante: rolou barranco abaixo, foi jogado para fora do veículo, mas teve apenas alguns ferimentos. Tive também a oportunidade de conhecer uma pessoa que sobreviveu a dois AVC e se recupera incrivelmente bem.

Não vou cair no lugar comum de dizer que temos que viver cada dia como se fosse o último. É ingênuo na teoria. E impossível na prática. Porém, já que a vida não está mesmo em nossas mãos, o melhor que temos a fazer é tentar diminuir aquela lista de cinco arrependimentos ali em cima. É isso que tenho feito a cada texto que escrevo. Pouco a pouco, o terceiro tópico da lista (“gostaria de ter tido a oportunidade de expressar meus sentimentos”) vai sumindo da minha lista de possíveis pesares. Talvez um dia eu até possa me arrepender de expor uma parte importante da minha vida pessoal aqui. Mas com a quantidade de apoio que tenho recebido, com a quantidade de amigos que têm aparecido e reaparecido, posso afirmar com segurança: de solidão não vou morrer.


Para quem tiver interesse, todos os links que comentei no texto:
Blog do Daniel Piza
Carta do pai inglês: 28 lições de vida
Texto de Frei Betto: A arte de reinventar a vida
Blog: Eu sobrevivi a um AVC (mas foram dois)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Meu elefante

A Terra ainda era uma sopa quente e nutritiva de bactérias quando, por alguma razão, uma ameba decidiu que preferia ficar na caverna, cuidando das amebinhas recém-nascidas e assistindo comédias românticas na televisão, enquanto a outra ameba, com fome e entediada, resolveu que era melhor sair para caçar – porém, no caminho, achou por bem parar no bar para fumar um cigarro, jogar uma sinuca e tomar umas cervejas com alguns protozoários e platelmintos que se divertiam por lá. 

Pronto. Estava declarada a guerra dos sexos. Em algum momento da história do planeta, a vida se dividiu em dois times: machos e fêmeas. Não sei se por pré-determinação genética ou pela convivência, ambos os grupos foram logo adquirindo hábitos típicos, como não levantar a tampa da privada pra urinar, no caso deles, e ter uma atração doentia por bolsas e sapatos, no caso delas. Rapidamente, até seres unicelulares acéfalos tornaram-se capazes de facilmente separar homens para um lado e mulheres para o outro.

Pausa para uma reflexão contemporânea. É claro que vivemos em tempo de diversidade sexual. Entendo e concordo que os estereótipos do que é masculino e feminino não poderiam estar mais fora de moda. Entre uma ponta e outra existem umas duzentas novas classificações, todas igualmente válidas. Porém, mesmo em uma era em que o ser humano começa a admitir a sua complexidade e a absorver a existência de fenômenos como a trans-sexualidade, por exemplo, é preciso aceitar que a diferença de gênero ainda é uma forma prática de subdividir as pessoas. E que, independentemente da orientação sexual e com a certeza de haver exceções, o fato de nascer menino ou menina ainda tem uma influência determinante em nossos hábitos comportamentais.

Feita esta observação, seguimos adiante. O ponto é que nós, homens, somos plenamente capazes de ignorar a programação de todos os Telecines, todas as HBO’s, todas as novelas, todas as séries e, no meu caso, até dos canais de esportes. Porém, existem dois tipos de canal que miram a audiência masculina e nos capturam como se fôssemos presas fáceis. Dois tipos de programa que sempre terão a capacidade de interromper as nossas zapeadas, mesmo que o conteúdo seja absurdamente ruim. Podem confiar, falo por experiência própria. Se algum dia você vir um sujeito apertando o controle remoto sem interesse, até que, de repente, algo na tela chama atenção e acorda o dito cujo daquele estado letárgico, pode ter certeza: ou é filme pornô, ou é um documentário no estilo National Geographic.

A explicação é simples. Se pararmos para pensar, existe uma relação bastante próxima entre as duas categorias de entretenimento, é natural que o público seja o mesmo. Tem cenas do pornô em que a atriz mais parece uma zebra sendo devorada. Títulos como Vida Selvagem e Boca Mortal servem tanto para filmes sobre ninfomaníacas famintas quanto para documentários sobre leões e guepardos. Os feromônios à flor da pele, o instinto animal, os acasalamentos sem amor: está tudo lá. Mudam apenas os animais.

Mas deixemos a pornografia para a mesa de bar. Para a infelicidade de alguns, a partir daqui o texto segue mais a trilha de elefantes africanos do que de coelhinhas tchecas. Não é pudor, garanto. É que minha zapeada nesta semana parou justamente em um filme sobre a migração de um imenso grupo de paquidermes em busca de água.

A história se tratava da influência do sol na vida terrestre de um pólo ao outro. Em algum lugar no meio da África, um grupo de elefantes atravessava um deserto, por semanas, sem enxergar nada por causa das tempestades de areia, sem parar para comer ou descansar. Na verdade, era uma questão de sobrevivência. No meio da secura, tinham de chegar aonde havia água e vida o mais rápido possível. Não havia chances para quem ficasse para trás.

Foi neste momento que o documentário me pegou. Um elefante jovem se perdeu do grupo e, mesmo cego pela areia nos olhos, conseguiu reencontrar a trilha dos seus familiares. O problema é que o filhote, inexperiente, seguiu o caminho na direção contrária. Do alto, com uma visão completa do deserto, dava para ver a triste cena do elefante, em meio às nuvens de poeira, se afastando dos mais velhos – e da possibilidade de sobreviver ­ – cada vez mais.

Não houve final feliz. A narrativa passou para as técnicas de caça em equipe de uma matilha de cachorros selvagens e deixou o destino do elefante subentendido. Melhor assim, sem pieguice, mostrando toda a imparcialidade das leis da natureza. Você pode ser gentil, você pode ser inteligente, você pode ser o melhor exemplo da espécie, nada o livra da possibilidade quase aleatória de antecipar o destino natural de tudo o que é vivo: morrer.

Fiquei intrigado com qual teria sido a reação da mãe daquele elefante, curiosidade que o documentário não saciou. Será que o cérebro desse animal, folcloricamente conhecido por sua boa memória, recorda do filho que desapareceu? Será que se ela tivesse visto seu pimpolho desgarrar, teria voltado para buscá-lo? Será que existe algum teor de humanidade neste que não só é um dos maiores, mas também um dos mais inteligentes animais? Quem a natureza prefere? O pai racional, que continua no grupo e encontra a água? Ou o pai governado pelo coração, que volta para o deserto e se arrisca a morrer de sede, porém junto com sua cria?

Meu filho Antonio, com sua falta de um pedaço em um dos cromossomos, descolou do grupo. Está claro que fará muito, mas não fará nada no tempo dos outros, não fará nada exatamente como os outros. Meu filho, literalmente, segue a própria trilha. Às vezes parece que está indo na direção contrária, às vezes parece que está andando em círculos, mas na verdade, só uma coisa é certa: assim como o elefantinho, ele – nossa família – está no meio de uma nuvem de poeira. Não é possível prever o próximo passo. Não sabemos onde estão as fontes d’água. Não sabemos quando poderemos beber.

Diferentemente da elefanta, voltei para buscar meu filhote. Entrei na tempestade de areia, tomei rajadas por todos os lados, achei por um momento que fosse me perder. Ainda estou meio confuso, confesso. Não sei direito o caminho para fora da nuvem de poeira. Mas pelo menos estou de mãos dadas com o meu filho. E sei, como quem fareja a umidade no ar, que vamos dar um jeito de sobreviver. Vamos inventar um novo jeito de viver.


segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Metralhadoras e lanternas

Não tenho dúvida alguma de que a revelação a seguir me causará enorme constrangimento, mas o fato é que, quando pequeno, tinha medo do escuro. Não aquele temor típico, que passa aos cinco, seis anos. Era patológico. E durou até o início da adolescência.

Na época, sem saber o que mais fazer para dormirem em paz, meus pais investiram em uma psicóloga infantil que, pouco a pouco, com técnicas que lembro em detalhes até hoje (e ainda uso esporadicamente), foi iluminando o caminho e mostrando que não havia serial killers atrás da cortina do meu quarto. Alguns gostam de chamar essas pessoas de anjos que aparecem em nossas vidas. Eu prefiro chamá-los de lanternas.

Na verdade, o aspecto dos anjos sempre me incomodou um pouco. Na hora do perigo, não gosto da ideia de ter que confiar na proteção de alguém com bochechas rosadas e lençóis esvoaçantes no lugar das roupas. Se for para enfrentar um monstro, gostaria de ter ao meu lado alguém com cicatrizes, defeitos ordinários e pouca ou nenhuma inocência na cabeça. Acho mais eficiente contar com um protetor que, em vez de arco e flecha, tenha um AK-47 nas mãos. Como isso nem sempre é possível, na vida real, aquela em que volta e meia tropeçamos, em vez de recorrer a seres celestiais, busco pessoas de carne e osso em quem eu possa me segurar. Gente normal, sem asas nas costas, mas com uma luz capaz de iluminar meus próximos metros. Amigos, parentes, médicos e até desconhecidos que, às vezes sem perceber, exercem a função de lanternas. E nos momentos escuros, dão a coragem que me falta para continuar a andar.

Acredite. Receber a notícia de que seu filho é diferente da maioria das crianças que nascem é um alçapão para as trevas. O chão se abre e você despenca para um lugar onde ninguém tem coragem de afirmar se o seu bebê vai andar, se vai falar, se vai sobreviver. Tudo é sinônimo de dúvida. O futuro, os dias seguintes e até as próximas horas são um verdadeiro breu. Acuado, cego, eu precisava de lanternas. Rapidamente algumas começaram a acender.

A primeira delas foi um pediatra chamado Dr. Marcello. Com quase nenhuma ideia de quem eu era – identifiquei-me como amigo da sua filha e do seu genro – atendeu o meu chamado em um domingo de manhã e em pouco tempo estava no quarto do hospital examinando o Antonio. Fez testes básicos, reavivou meia dúzia de esperanças, mas, acima de tudo, acalmou nossos corações. Foi a primeira pessoa a colocar a profissão de lado e a dizer, mesmo sem poder ter certeza, que ficaria tudo bem.

Neste dia aprendi que a sinceridade só é uma virtude quando vem acompanhada de tato. Sair despejando verdades por aí com a falsa desculpa de ser honesto com os outros não é suficientemente honrado. Quero distância dos que transformam sua franqueza em uma arma e, muito mais do que verbalizar os fatos, sentem um prazer interno em atingir os outros com o indizível, julgam-se corajosos por falar na cara. Por amor próprio e aos meus ouvidos, privilegio as palavras cuidadosamente escolhidas por quem realmente quer ajudar, em vez de relatar sem filtros o que está pensando ou vendo. Ao meu lado mantenho as pessoas que dizem tudo, mas que antes de abrirem a boca, refletem se é o momento certo e qual a melhor forma de expressar.

Afirmo isso porque, nas horas seguintes ao nascimento do Antonio, o Dr. Marcello foi o primeiro médico que teve a delicadeza de nos mostrar não apenas os defeitos do nosso filho, mas principalmente, as características que ele tinha em comum com qualquer outro bebê. Em vez de focar nos estigmas morfológicos que prenunciavam uma possível síndrome, ele nos mostrou que o Antonio estava se alimentando satisfatoriamente, estava reagindo aos estímulos básicos e tinha condições de sair dali brevemente. Conversou conosco olhos nos olhos, passou o calor de quem se importa com os pacientes e nos presenteou com algumas palavras de alento. Iluminou os próximos passos. Como um farol em uma estrada obscura, deu-nos condições de seguir.

O ano passado foi sem dúvida o mais difícil e amedrontador que já vivi. Entretanto, tive a sorte de encontrar muita ajuda. Peço aqui uma licença aos leitores que não têm contato direto comigo. Há pessoas que preciso agradecer.

Dr. Marcello, Daniela Utescher, Elizabeth Mcpherson, André Palmini, Dra. Betânia (do Sarah), Eliane (do Sarah) e Dra. Ana Lúcia, vocês foram minhas lanternas em 2011. Obrigado por clarearem a sombra e me sugerirem, acertadamente, o que fazer.

Não posso deixar de mencionar o inesgotável amor e disponibilidade dos nossos familiares (meus e da Ana, para mim são todos uma só família), além do carinho imensurável de amigos e leitores deste blog. Sem essa energia não conseguiria ir em frente.

A paternidade foi a minha primeira oportunidade de visualizar que tudo acontece por uma razão. Desde o nascimento do Antonio, tenho utilizado todo o aprendizado reunido em situações anteriores, desde o saber falar inglês até o gosto por escrever. Sinto que minhas dificuldades e desafios até o dia em que me tornei pai foram, na verdade, meras aquisições de ferramentas. Instrumentos que tenho utilizado exaustivamente para enfrentar meus obstáculos de agora.

Na infância, venci meu medo de escuro criando cápsulas imaginárias para dormir, acionadas e destravadas por senhas absolutamente indecifráveis. Depois, na adolescência, tive de enfrentar a escuridão todas as noites para alimentar meus cachorros que ficavam no fundo do quintal da casa, numa fronteira com dois terrenos baldios. Ao longo da vida, por questão de honra, sempre me forcei a encarar o escuro de frente. Aos poucos, sentindo a pulsação na garganta, descobri como separar a imaginação da realidade.

É esta a habilidade que mais exercito como pai. Por algum tempo, fiquei borrado de medo com o filho que tinha gerado. Imaginei cenários deprimentes, uma vida de limitações e tristezas, chorei pelos cantos, morri de pena de mim mesmo. Mas hoje o Antonio ri enquanto passa a mão na minha barba, cai na gargalhada quando alguém tosse, adora sair de casa para passear, passa horas olhando o movimento pela janela, sente cócegas na barriga e acorda com um cheiro no cangote do qual sou dependente químico. O dia-a-dia com um filho especial não tem nada a ver com a escuridão que eu havia fantasiado. Nesta manhã, quando o chamei pelo seu nome, ele olhou para mim e abriu um sorriso. Não posso imaginar começar o dia com alegria mais real.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

De banho tomado

Atravessar de um ano para o outro é como chegar a uma praia distante, debaixo de um sol escaldante, jogar a bagagem pesada na areia, arrancar a camisa num só golpe, tirar as calças sufocantes, livrar-se de tudo o que incomoda e, nu das coisas passadas, mergulhar na água.

Por mais controvérsias que existam a respeito da contagem do tempo, toda passagem de ano traz consigo essa sensação de banho tomado. De uma hora para a outra, sem nenhuma explicação lógica, sentimos o corpo e a mente revigorados. Alguns se dizem fartos da ilusão de renovação, mas é inegável que o ciclo recomeça mais leve. Ano novo é um clichê hollywoodiano ao contrário. Tem sempre início feliz.

Pena que a catarse dos feriados emendados é tão volátil. O mundo seria melhor se tivéssemos coragem de dizer ao vivo, em dias comuns, os sentimentos que só declaramos em cartões ou em abraços alcoolizados. Seria útil se nossos olhos continuassem relevando defeitos e ignorando desavenças. Seria bom se mantivéssemos o foco no que realmente importa, que é ter saúde e viver em paz.

Mas não. Ao longo do ano preferimos sofrer com grandes tragédias da vida privada, como o fato de continuar não cabendo numa calça 40. Corremos para as academias, malhamos bíceps, tríceps e glúteos, fingindo preocupação com a pressão alta, quando na verdade, estamos invariavelmente infelizes com o que vemos no espelho. Nossos olhos passam doze meses ocupando-se com medidas, marcas, tamanhos e outros detalhes inúteis. Só na troca de ano – nos agradecimentos e nos pedidos – enxergamos o que tem significado relevante.

Devo confessar, entretanto, que lá em casa tem um rapaz de 11 meses que passou o feriado inteiro malhando os muques. Há uns quinze dias, realizou uma conquista imensa: passou a conseguir sustentar o corpo nos braços por uns instantes, como numa flexão sem as pernas. Nas primeiras vezes, achei que fosse sem querer, mas ele tem repetido o feito a cada oportunidade, numa intenção clara de descolar do chão. Reclama quando cai, fica cansado, mas logo volta a fazer um esforço concentrado para se reerguer.

Nesta virada do ano, agradeci por ter visto isto. Pedi que em 2012 meus olhos ainda vejam o Antonio se sentar e, quem sabe, até engatinhar. Não quero cair na armadilha de determinar prazos para as vitórias dele, nem para as minhas. Esta ansiedade não contribui com nada. Mas se a chegada do ano novo serve para limpar a paisagem e enxergar com clareza nossos sonhos, admito que este é o meu maior desejo: ver meu filho se locomover.

Quanto a mim, tracei um ou dois objetivos que vou perseguir com afinco. Espero que meus olhos não se assustem com os obstáculos e encontrem as saídas para concretizar minhas aspirações. Porém, não nutro a esperança ingênua de que tudo vai se realizar como projetei. Aos poucos, a vida tem me ensinado que planos têm a mesma probabilidade de dar certo ou errado, o importante é ter algum para viver.