segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Homem de sorte

Na semana passada uma pessoa de Brasília ganhou na megasena. Pegou uma caneta, rabiscou o 3, o 19, o 22, o 24, o 35 e o 49 na lotérica Corujinha, no Lago Sul, bairro onde cresci, e, dias depois, estava milionário. Ou milionária. Tanto faz. Sacou um prêmio de 14 milhões de reais.

No dia seguinte ao sorteio, lá estava a tradicional fila de supersticiosos na casa lotérica em que foi feita a aposta, tentando reencontrar as coordenadas da fortuna, desejando apostar no mesmo guichê que o vencedor, respirar o mesmo ar, quem sabe até ser atendido pela mesma funcionária. Quando existe chance de ganhar dinheiro, qualquer resto de sorte é bem-vindo.

Porém, já dizia o filósofo Heráclito, “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, pois nem o rio nem o homem são mais os mesmos.” Pense. Até mesmo se o próprio vencedor fosse ao mesmo lugar, na mesma hora, e reproduzisse todos os seus gestos de antes, suas chances de repetir a façanha em nada aumentariam. Ao contrário. Pela lógica, se ele remarcasse os exatos números apostados na rodada anterior, apesar de ter a mesma probabilidade de acerto do que qualquer outra combinação, é aceitável dizer que ganhar novamente seria algo absolutamente inesperado. Nem o mais inocente dos supersticiosos acreditaria que não haveria nada de errado.

Superstição nada mais é do que um anabolizante da esperança. Quanto mais específica e difícil, mais a macumba vai fazendo nossa esperança inflar, até que ela tome forma e tamanho completamente desproporcionais. Ao se olhar no espelho, a esperança flexiona os braços inchados, orgulhosa, acreditando ser mais forte do que realmente é. O cérebro, encantado com aqueles músculos artificiais, deixa de olhar a esperança como ela é – um simples desejo – e passa a considerá-la um destino traçado. O que antes era apenas uma possibilidade repentinamente ganha status de certeza infalível. Cego para os fatos reais, surdo para as estatísticas, o cérebro chega a criar um sexto sentido, na tentativa de justificar o fato de estar completamente convencido de que “desta vez vai dar certo”. É só não lavar a roupa, é só refazer os passos, é só sentar no mesmo lugar. O gol vai sair, o número vai ser sorteado, o filho vai passar no vestibular.

Para mim, sorte está na mesma gaveta que a fé, que o amor e que a maldade: existe, mas ninguém no mundo é capaz de explicar. O interessante é que o próprio Heráclito chegou perto de algum tipo de entendimento quando diz que “o mundo é um fluxo permanente em que nada permanece idêntico a si mesmo. Tudo se transforma no seu contrário.” Em palavras simples, só é possível a existência - e entendimento - de algo porque antes havia o seu oposto. Ou seja, só existe a noção de sorte quando, antes, estávamos imersos em algum tipo de azar. E assim como o dia vira noite, o molhado vira seco, o escuro fica claro, é natural pensar que o azarado logo terá seus dias de glória. E que os sortudos mais cedo ou mais tarde também viverão sua amarga dose de azar. (Curiosamente, logo após sair a notícia sobre o vencedor brasiliense e sua fortuna de 14 milhões, outra matéria dizia que muitos sorteados da loteria voltam a ficar pobres em poucos anos.)

Na dúvida, continuo investindo alguns reais ao mês na megasena. Vario os números e as lotéricas, uma pequena superstição pra turbinar minhas esperanças. Meu sexto sentido acredita que, se a sorte não souber onde eu estou apostando, tenho mais chances de pegá-la desprevenida em algum lugar. Porém, para não nutrir expectativas vãs, resolvi fazer alguns cálculos sobre as minhas chances de sair vencedor em sorteios improváveis. E para isso, utilizei, é claro, o maior prêmio que já ganhei em minha vida: o nascimento do meu filho.

O Antonio, todos sabem, nasceu sem um pedacinho no cromossomo 6. No mundo inteiro, até agora, foram diagnosticadas 210 pessoas com problemas no cromossomo 6. Considerando que o mundo tem 7 bilhões de habitantes, a chance de ter um filho com este problema é de aproximadamente 1 em 30 milhões.

Porém, se considerarmos apenas os que têm uma deleção similar à do Antonio, foram diagnosticados apenas 12 até agora. Isto significa 1 chance em 580 milhões.

Indo mais a fundo, se considerarmos todos os indivíduos diagnosticados com exatamente a mesma deleção do Antonio, chegamos à impressionante marca de 0. Ninguém. Nenhuma alma sequer. Nadica de nada. O Antonio é um caso número 1. O que diminui a probabilidade de ter um filho como ele ao máximo possível: 1 chance em 7 bilhões.

Considerando que a chance de ganhar na megasena é de 1 em 50 milhões, cheguei à conclusão óbvia de que não preciso de superstição.

Eu já ganhei na megasena. Exatamente 140 vezes.


32 comentários:

  1. No caso, também sou uma mulher de sorte ;)

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  2. Fabinho,
    Cruzando as probabilidades de um cara conhecer uma mulher legal como a Ana aqui em Brasília, com as probabilidades de se ter uma fofura como Tom Tom de filho, percebe-se que você, aos trinta e poucos anos, já gastou sua cota de sorte.
    Ou SEJE (como diria um mestre de obras que conheci): já era, queridão!!! Nem gasta gasolina percorrendo as lotéricas do DF...
    P.S: Atenção para a minha sagacidade, fazendo um link desse texto com o texto da obra no seu apartamento. Já comecei a te ensinar o dialeto pedreirês... Muahhhhhh!!!! ( cadê a chuva de papel picado, produção??!!!)

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    1. Manu, sua técnica de tentar me afastar das lotéricas não irá funcionar. Tem muita gente que nunca aposta, tô tentando ver se consigo ficar com a cota de sorte dos outros - pelo menos na loteria.
      Ou seje: bora se encontrá na Corujinha.
      P.S: Chuva de papel picado sendo providenciada. Gelo seco e estroboscópica?

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    2. Por um momento achei que colaria e diminuiria a concorrência...Droga!!!

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  3. Fábio, talvez vc não tenha a noção do qt vc é sortudo. Por algum motivo, vc foi merecedor de uma megasena especial, diferente, onde o prêmio maior é o sorriso gostoso, aquela dormidinha legal no seu colo e esses bracinhos fofos, que dá muita vontade de morder(bem de levinho,é claro). E o seu prêmio, com esse chapéu ficou um charme só,uma figurinha.

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    1. Sonia, você precisava ver a cara dele nos acordando hoje de manhã. Só sorrisos. bj

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  4. É bem difícil eleger um texto para dizer que é o melhor sabendo que você vai se superar a cada semana. E nem digo isso para pesar nos seus ombros, é algo que vai acontecer naturalmente e todos sabemos disso. Mas esse me emocionou de uma maneira muito especial e fico bem feliz que, mesmo de longe, eu tenha a oportunidade de contar um pouquinho dessa história. Ontem mesmo, no almoço com o pessoal do trabalho, estava falando da minha sobrinha e do Antonio, sobre como são especiais com suas diferenças, como nos fazem seres humanos melhores, nos levam a superações que jamais imaginamos, tem a capacidade de unir as pessoas... isso é tão bonito! E são pessoinhas que chegaram nas nossas vidas simplesmente porque tinha que ser, porque temos muita sorte. Sortudos Ana e você, sortudos todos nós de compartilharmos dessa história.

    Beijos saudosos!

    Mari.

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    1. Eita, que saudade da nossa convivência mais de perto. Esse país é grande demais! rs. Em dezembro daremos um pulo em SP. Vamos tentar nos encontrar. Grande beijo

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  5. Fábio, com certeza você e a Ana são mesmo pessoas de sorte, pois o Antonio é a coisa mais fofa e linda que se pode imaginar. Eu sou também uma tia de sorte, mas continuo jogando na megasena. Vai que a sorte dê moleza e saiam meus números? risos
    Beijos

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  6. Qual era a chance de encontrar o seu blog? talvez 1 em milhões, mas poder ter contato com as belezas dos seus textos é também um gde premio. Parabens e um abç.
    Dulce

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  7. Homem de sorte mesmo!! em tempo, que coisa mais linda essa foto!!

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  8. Podemos dizer que somos sim sortudos, afinal a vida nos premiou c/ muitas coisas boas. P/ não ser repetitiva, faço minhas tb, as palavras da Sonia. Bjs

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  9. Fábio,

    Superstição para mim, peço compreensão para que discorda, é negativa. Os supersticiosos tentam se enganar achando que haverá certeza no amanhã, tentam acreditar que se cumprirem certos rituais a má sorte não chegará. Não existe má sorte ou boa sorte. A vida é contínua, dinâmica, incerta e imprevisível. E nela poderemos viver a boa ou a má sorte conforme a nossa visão de mundo. O que é triste e pesado para uns poderá ser a libertaçao para alguns. O que é bom para alguns poderá não ser para outros. Assim, a boa ou má sorte é complexa. Há um provérbio espanhol que fala sobre a verdade e que nos faz refletir sobre o bom e o mau, a sorte e a não sorte. É mais ou menos assim: não há uma só verdade, tudo depende do lado, do ângulo que vemos.

    Para nós, a chegada do Antônio foi um choque no início. Afinal, ele era o diferente, o que veio fora do normal, do padrão. Hoje, já conseguindo ver alguma reação da parte dele, apesar das imensas dificuldades que ele enfrenta, vejo que ele veio para nos redimir. Para nos ensinar a ver e a amar o oposto. Não temos um só um lado da verdade hoje, temos o lado do Antonio, esta realidade difícil e trabalhosa, também preocupante, mas, ao mesmo tempo, recheada de ternura e afeto. Quem há de resitir a esse olhar sereno e tranquilo que ele nos oferta neste post ? Este semblante já é recompensador. Conmo diz a frase manjada do poeta português: viver é preciso, navegar não é preciso. E, parece, que tu e Ana andam navegando bem. Em frente, companheiros !

    Beijos

    Mãe

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    1. Acho que esperar um pouco de boa sorte pode ser divertido. Não acho negativo não, mas tenho consciência de que é autoenganação. bj

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  10. Lindo esse texto... E de fato, pais de anjos especiais, realmente ganham esse prêmio de Megasena... Tudo é único...

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    1. Tudo é impressionantemente único. E ao mesmo tempo, universal. É a alegria de ter um filho, eu acho.

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  11. Adorei o texto!E o bom de tudo,que vc é um cara rico,com um filho lindo desse...Estive pensando,eu não caminho a um bom tempo,e me considero também uma mulher de sorte,pois quando temos filhos,não existe mais nada nessa vida,que nos torne infelizes!bjss

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  12. Fábio,
    cheguei a seu blog por indicação de minha irmã. Você escreve lindamente, em estilo, em ideia, em emoção. É quando a gente sente que as palavras vêm de dentro, vão para o mundo e voltam pra gente mesmo como autoinspiração.
    É muito bom ter olhos para descobrir as megasenas em nosso cotidiano. Tenha a certeza de que Antonio também tirou a megasena. E é esse retroalimentar que faz tudo valer muito a pena.
    Um beijo,
    Marusia
    PS: estou na Asa Norte, mas também cresci na Asa Sul...

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    1. Que bom que te indicaram, Marusia. Que bom que gostou. Volte segunda. Tem mais. bj

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  13. Todos somos , de uma forma ou outra, agraciados com a sorte.

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  14. Sem palavras!! Liiiiiiiiiiiiiiiiiindo texto!!

    Sou uma pessoa de sorte por conhecer os Ludwig!

    Beijo.

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