segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Acredite ou não

Cristãos, judeus, muçulmanos, ateus, macumbeiros, ou seja lá qual for seu deus, saquem suas armas. A guerra vai começar. As regras – sim, há regras – são simples. Primeiramente, você defende o que acredita, sem gaguejar e com convicção febril. Se for do tipo que gosta de holofotes, pode adicionar algumas tiradas irônicas aqui e ali, como se fosse um comediante de stand up. O importante é manter aquele ar pretensiosamente despretensioso e metralhar piadas ácidas e ofensivas sempre que possível. Seu oponente ficará no chão e seu rebanho, às gargalhadas, o presenteará com palmas, assovios e, quem sabe, até uma ovação em pé. Em seguida, na vez do outro atacar com sua fé absurda, para não dizer estúpida, finja que ouve atentamente a cada argumento, quando na verdade você procura por pontos fracos, com seu faro aguçado para incoerências teóricas, que serão estrategicamente usadas contra o pobre coitado na sua devida hora, na sua tréplica.

Vence quem insistir por mais tempo, já que a persuasão neste tipo de batalha é mera alegoria abstrata e nunca poderá ser alcançada. É fundamental que os cumprimentos iniciais sejam cordiais, como em todas as artes marciais, mas uma vez no tatame, vale humilhar, cuspir, chutar o saco, sequestrar, estuprar, dar tiro na cabeça, degolar e, se necessário, como fiéis guerreiros que somos, mesmo que seja contra todos os deuses em vez de a favor de um, podemos até lançar mão técnicas mais sofisticadas, como cobrir o próprio corpo de bombas ativadas e partir voluntariamente para o céu, ou inferno, caso acreditemos nessas coisas, em defesa da nossa causa e honra. Sim. Vale terminar com os miolos num canto e o corpo no outro. Só não vale dar o braço a torcer.

Frequentemente abro arquivos que chegam a mim por email, com fotos do pôr do sol e de montanhas nevadas, legendadas por incansáveis repetições das maravilhas criadas por Deus. Com um pouco mais de interesse, mas ainda pouco, leio artigos que me chegam a respeito da ciência e da comprovação, se não empírica, por óbvia dedução, da impossibilidade da existência de uma divindade suprema, não importa a religião. Meu cérebro decodifica e compreende sem nenhuma falha a informação que detemos até aqui. Porém minha mente, por livre e espontânea vontade, escolhe um dos muitos lados existentes, sem grandes preocupações com conceitos inexatos, como o que é certo ou o que é errado, e nos momentos em que acho que devo, volto minha atenção para dentro e busco auxílio, conforto e um pouco de paz na minha espiritualidade. Mudam os nomes, mudam os livros, mas as religiões e as filosofias de vida, como o ateísmo, não passam de ideias pelas quais nos apaixonamos. E com as quais escolhemos viver.

Quem gosta de futebol sabe muito bem o que é isso. Por influência dos parentes, dos amigos ou de um craque fazedor de gols inesquecíveis, logo nos primeiros anos escolhemos uma camisa para amar. A bandeira vira manto sagrado. O hino vira oração. Compramos suvenires. E como devotos em procissão, vamos todos os domingos ao nosso templo, ou para frente da televisão, para cantar nosso amor por aquele time, para fazer nossos rituais semanais de veneração e para cultuar nossos santos, que às vezes fazem milagres com um passe errado, e acabam salvando o jogo, no fim do segundo tempo, para alívio e alegria dos nossos corações. No dia seguinte, com a alma lavada, mas suja de maldade, humilhamos seres humanos que na maioria dos dias consideramos amigos, mas que hoje merecem ser punidos por vestirem verde em vez de vermelho. Os mais extremistas, uma minoria, assim como nas religiões, julgam-se em guerra santa e, num transe passional, resolvem evangelizar seus rivais à força, nem que seja com socos na boca e chutes na nuca.

Se clubes de futebol, que somam pouco mais de cem anos, são capazes de despertar o melhor e o pior de nós, imagine o que podem fazer conceitos como Deus ou Alá, que há milênios atracaram em nossas cabeças até então quase inabitadas, exterminaram os neurônios mais rebeldes, catequizaram os mais dóceis e, dia após dia, os obrigaram a podar nossos prazeres e a plantar culpas, até acreditarmos que prazer é pecado e culpa é redenção, uma ideia que balança, balança, mas não caiu até os dias de hoje.

Entretanto, se tempo de atuação for a medida de força e poder, os deuses da mitologia grega deveriam atrair mais gente que final de copa do mundo. Há inclusive o próprio deus do tempo, Chronos, que neste caso reinaria absoluto, provavelmente portando um Rolex dourado, maior que o Big Ben, em um dos pulsos. O tempo sim é um deus que vale a pena temer. É mais cruel do que todos os outros deuses já inventados pela imaginação do homem. E pra piorar, tem o cansativo hábito de nunca parar, nem que você peça muito, mesmo que você queira dar só uma palavrinha num momento de desespero.

O tempo é mesmo um deus impiedoso. Ontem, por exemplo, o Antonio fez nove meses. Já é mais vida fora da barriga do que dentro dela. E pra variar, por um lapso de atenção, por mais que tentasse aproveitar cada segundo, não vi o maldito do tempo passar. E olha que fiquei incontáveis horas de vigília, acordado de madrugada, enquanto meu filho decidia se chorava, se mamava ou se, em noites de sorte, eventualmente dormia esparramado no meu colo. Eu, cambaleando a cabeça de sono, não percebi que Chronos estava o tempo todo ali, fazendo o dia amanhecer e o corpo do Antonio esticar em progressão geométrica.

Nove meses. Eu deveria ter imaginado que o tempo suficiente para formar uma nova vida deveria ser mais do que o bastante para transformar a minha. Aprendi a trocar fraldas, a montar e desmontar carrinhos, a dormir com os olhos fechados e os ouvidos abertos, a distinguir choro de dor, de manha e de fome. Perdi cabelos, ganhei quilos. Depois perdi os quilos, mas infelizmente não ganhei os cabelos de volta. Caí de paraquedas em um mundo em que microretrognatia e traqueomalácia são palavras comuns. E para minha surpresa, em poucos meses estava fluente na nova língua.

Apesar de eu, como todos os pais, estar sempre com uma sensação de falta de tempo, esse deus maniqueísta, bom quando você não precisa dele, mau quando você quer dormir mais 10 minutos, faz questão de deixar seus rastros. As roupas do Antonio apertando, as papinhas engrossando, o peso aumentando, tudo é evidência clara de que o tempo está passando. Porém Chronos deve ter aprontado alguma para Zeus ou outro superior na hierarquia, porque lá em casa ele não tem o direito de fazer o que bem quiser.

O tempo, que em seis meses consegue colocar a maioria dos bebês para sentar, ainda não conquistou essa alegria com o Antonio. Engatinhar e andar também são projetos para o futuro, e nem ele, o tempo, sabe dizer ao certo quando essas habilidades vão começar a se manifestar. Falar, comer sólidos, ler, escrever, correr. Incógnitas que estão tão lá pra frente que o próprio tempo ainda não tirou um tempo para pensar nelas. A passagem do tempo, que sempre se exibiu como solução para tudo, está mais perdida que caipira em cidade grande. E à medida que os meses se vão, e alguns atrasos se mantêm, a Ana e eu estamos tendo que colocar em prática um conselho que nos deram logo que o Antonio nasceu: trocar a palavra expectativa por esperança.

Como a maioria das religiões nos faz crer, o céu é o limite. Minha mulher e eu – e mais um monte de familiares, amigos e médicos – estamos fazendo todo o possível para ajudar o Antonio a crescer e a se desenvolver, no tempo dele, do jeito que for possível para ele. Às vezes é cansativo, às vezes é frustrante, mas volta e meia a gente é surpreendido com uma nova conquista, como vê-lo girar sozinho na cama para dormir de bruços. Uns dirão que foi graças a Deus. Outros dirão que era só uma questão de tempo. Não me importa. A emoção de cada vitória do Antonio é a mesma. E é motivo suficiente para eu acreditar que ele é capaz de mais.

25 comentários:

  1. Parabéns! Belo texto.

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  2. Sobre os textos, não canso de elogiar. Ir e voltar, sem perder o tema principal do texto não é para qualquer um!

    E sobre o Antonio, fiquei impressionado ontem no skype como ele está grande! Já são 9 meses? UOW! Qual a sua fé não importa, contanto que você a tenha! Seja em alguém que vai abençoar o Antonio ou no próprio Antonio!

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  3. Obrigado, meu velho. Minha fé é das pesadas meu amigo. É dupla. Acredito que ele é abençoado. E acredito nele também. 9 meses. enorme. bj

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  4. Fala, bonito! Que prazer começar a ler o blog que você havia comentado da última vez que a gente se encontrou. Muito bom poder passar a acompanhar o Antonio, você e a Ana, mesmo que à distância. Bom também ter o prazer da sua redação: ritmo, elegância e coerência. Quanto à esperança no Antonio, eu saco da minha cintura meu agnosticismo socrático e uma passagem de “Deus, um Delírio” de Richard Dawkins, que diz “…não basta se maravilhar com a beleza do jardim, é necessário acreditar que existam fadas encantadas nele?”. Um abraço, Fabião, Da Vila

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  5. Lenço Kleenex está neste momento conseguindo verba suficiente para o patrocínio, mandaram avisar.
    Fabinho, tenho certeza que ele vai conseguir fazer muita coisa que, assim como o tempo, vai te pegar de surpresa. Eu acredito que eles são "especiais" por uma condição única e divina de conquistar nossos corações. Divina, sim. Deus continue abençoando as conquistas do Antônio.
    Beijão.

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  6. no que puder depender da nossa torcida, da nossa ajuda, e tudo mais que pudermos desejar e fazer, ele vai te surpreender mais e mais!
    conte com a gente para QUALQUER COISA!
    e vamo colocar essa molecada para brincar mais!

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  7. Poly, ele nos surpreende todos o dias. É sensacional.

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  8. Dani, só de conviver naquela bagunça de ontem, que o Antonio dava risada vendo filme com o Tito e o Gabriel, é o melhor estímulo que ele pode ter. Repetiremos

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  9. Passando por aqui às segundas. Bom ter meu amigo por perto. Lindo texto. Abraço, meu velho. Rafa.

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  10. Rafa, fico feliz que esteja vindo. Abraço

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  11. Sou tua fã e espero, ansiosamente, por um livro teu. Teus textos são inteligentes, elegantes, emocionantes....desejo muita saúde pra ti, pro Antônio e pra mãe do Antônio. Ana (mãe da Manu)

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  12. Ana, que honra tê-la como leitora. A Manuela é uma amiga muito querida, brilhante. Fico lisonjeado que ela tenha dividido o blog com você. Também espero ansiosamente por um livro meu. rs. Existem mil projetos, esboços e rabiscos perdidos pelas gavetas. A chegada do Antonio finalmente me trouxe o sentido de urgência da vida, o ímpeto de não esperar mais um dia para realizar meus sonhos. Juntarei meus papéis amassados, mandarei para editoras e, quem sabe, algum dia estarei assinando um dos primeiros exemplares para você. Grande beijo. Obrigado pelo comentário.

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  13. Bons textos cara espero que sempre escreva e continue dando noticias abraços , vim parar aqui pelo face da Marina Valsechi.

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  14. Obrigado Gaspar. Continuarei escrevendo. Volte sempre, comente sempre que desejar. Abraço

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  15. Oi Fábio! Não sei se lembra de mim, sou esposa do Hiram, que trabalhou com vc alguns anos atrás. Conheci seu blog por acaso e a partir de então tenho lido tudo que você escreve com muita emoção. Mesmo não conhecendo Antônio já possuo um carinho por ele e pelo o que você conta ele é mais que especial, é um conquistador, isso sim! Também temos uma filha de nove meses e estas pessoinhas nos enchem de muita alegria! Moramos em Bh, mas espero um dia encontrar vocês e apresentar, quem sabe, os futuros amiguinhos. Abraço para a família linda!!!

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  16. Cynthia, é claro que lembramos e temos acompanhado por fotos a sua linda Ana Clara. Com certeza vamos colocar a criançada para brincar, seja em BH, seja em BSB. Assim como você, lendo o blog, vamos acompanhando vocês por Facebook, msn, ou qualquer outro jeito. Que bom que tem lido. Um beijo

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  17. Lindo Texto, queria te falar que tenho um filho especial, que está hoje com 12 anos, o nome dele é Bruno, ele foi prematuro ficou com sequelas de Paralesia Cerebral. Quase pirei, o meu filho tão esperado, tão amado, Passava o tempo todo tentando fazer ele ser "normal" aprendi com o tempo que ele é ele, que faz tudo e um pouco mais no tmepo dele, ele é carismático, de bem com a vida, e tudo que falaram dele (que não andaria, não falaria e não exergaria) ele supereou, é um menino danado, lindo, que joga futebol, líder na escola. Aprendi a aceita-lo do seu jeito, tenho orgulho de todas as suas vitórias, o mais importante é não deixar que a ansiedade tome conta do nosso coração. Parabéns Thereza

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  18. Thereza, obrigado por contar a sua história. São pais e mães como você e crianças como o Bruno que estão iluminando o nosso caminho. É muito bom ver que não só continua, mas que pode continuar a ser muito boa. Obrigado pelo comentário. Um abraço

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  19. Oi, Fábio. Sou colega de trabalho da Neiva e conheci seu blog por ela. Você escreve muito bem e nos emociona muito.
    Os irmãos do meu marido são gêmeos e hoje tem 21 anos. Quando nasceram, um deles foi diagnosticado com uma síndrome (que não me lembro o nome agora), mas os médicos não deram expectativa nenhuma para ele. Falaram que não viveria muito tempo, e no tempo que vivesse não iria se desenvolver... Bom, ele hoje é um homem estudando jornalismo na UnB! Ele fez as coisas no seu tempo e a seu modo, mas fez tudo!! Falou e andou mais tarde que seu irmão, mas se desenvolveu dentro de suas limitações de uma forma admirável.
    Antônio tem todo o amor e suporte para se desenvolver à sua maneira. Tenho certeza que ele será sempre muito abençoado.
    Que Deus os ilumine.
    Um abraço,
    Isabella

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  20. Isabella, obrigado por dividir essa história. Uma inspiração. O Antonio demonstra querer fazer muitas coisas que o corpo dele ainda limita. Vamos deixar o tempo fazer o seu dever. Um beijo

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  21. Adorei o seu blog!
    Força para esta família!
    Acompanhe a minha luta em http://avccva.blogspot.com/.
    Boa sorte!

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  22. Adriana, obrigado. Vou acessar. Um abraço.

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  23. Parabéns Bito por essa inspiração maravilhosa q nos causa tanta emoção e nos dá mais força a cada final de leitura!!!
    Muita força e luz para vcs três.
    Bjs e saudades
    Lena

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