segunda-feira, 15 de julho de 2013

Pais e filhos


“Meu filho vai ter nome de santo
Quero o nome mais bonito.” 

Um dos primeiros discos que ganhei na vida foi “As Quatro Estações”, da Legião Urbana. Tenho guardada na memória a cena em que eu tiro o vinil da sacola e fico olhando para a capa prateada, sem ter certeza do tipo de música que aquela banda tocava. Mal sabia eu que estava em frente a um dos presentes que eu mais aproveitaria, e que eu o ouviria centenas de vezes, e que ficaria horas lendo as letras (como era bom ter encartes com as letras!), até decorá-las todas. Tempos bons. Pelas minhas contas, desde aquela época já se vão quase cem estações. E hoje, depois de abandonar Brasília e de voltar para ela, depois de ser pai, depois de viver um pouco, vejo que letras de músicas como “Pais e Filhos” e “Há Tempos” continuam a falar profundamente com a minha alma, apesar dos anos. Talvez por isso assistir a Faroeste Caboclo no cinema e ir a um show em tributo a Renato Russo, como fiz há algumas semanas, tenham tido um gosto tão especial.

Nos últimos meses, a vida com o Antonio – e com a sua deficiência que tanto nos assustava – tomou um rumo de normalidade bastante inesperado, dadas as expectativas usuais de uma família com uma criança especial. Há dois anos, nem no mais otimista dos meus dias eu poderia imaginar que tão cedo estaríamos com as rédeas nas mãos e tocando o dia-a-dia com certa tranquilidade, apesar da imensidão de incertezas que ainda persiste em relação ao futuro dele. O fato é que estabilidade de saúde, de rotina e de sono pareciam utopias há não muito tempo. Por sorte não eram. Pouco a pouco, fomos encontrando os medicamentos, os alimentos e as terapias que nos livraram das frequentes e desgastantes visitas ao hospital. Hoje só temos o sono interrompido por uma virose ali, uma tosse aqui, nada fora do comum.

Só que todo ser humano vem com um defeito de fábrica e apresenta uma insistência em procurar sarna para se coçar. E já que o Antonio cresce, engorda e sorri, a neurose dos pais se volta quase completamente para o seu desenvolvimento cognitivo e motor, que é ascendente, porém lento, extremamente lento.

Criar uma criança que tem deficiência física e intelectual é, antes de tudo, um teste de paciência. Entendo perfeitamente quando me dizem que ter um filho especial é um presente. E é. Porém é um daqueles presentes que vêm com manual, dos grandes, sem figuras, e numa língua que você não consegue decifrar.

O maior desafio é decidir qual a melhor forma de ensinar a criança ou tratar um problema de saúde. E é importante entender que todas as soluções têm prós e contras. Escolher todos os caminhos reduz a chance de sucesso, pela falta de consistência. Escolher apenas um é como fazer uma aposta: pode dar certo, mas pode ser pura perda de tempo. A decisão natural passa necessariamente pela busca de mais informações com profissionais da área. Para nossa decepção, há sempre defensores e opositores de todo e qualquer método. Quase sempre temos profissionais da nossa confiança defendendo – com argumentos críveis e embasados – caminhos opostos sobre um mesmo tema.

Explico de forma mais prática. Com cerca de um ano de idade o Antonio começou a sustentar os braços no chão, como se quisesse engatinhar, porém não ficava de quatro, na posição do gato. Em vez disso, ficava com as pernas esticadas no chão, bem abertas, parecendo uma rã atropelada da cintura para baixo. Para ajudá-lo a manter as pernas mais fechadas, uma profissional da nossa extrema confiança sugeriu, na época, que amarrássemos um pano e volta das pernas dele, fazendo um “oito”, sem apertar, apenas para estabelecer um limite na abertura das pernas. Assim, quando o Antonio tentasse engatinhar, era mais provável que ele subisse o bumbum e ficasse com os joelhos no chão. Achamos a ideia excelente e seguimos a sugestão. Porém, ao comentar com outra profissional de igual confiança, ouvimos a sugestão oposta: que deixássemos o Antonio com as pernas livres, pois elas eram bastante ativas. E que fizéssemos uma série de brincadeiras e estímulos, mas sem amarras. Ela acreditava que o não engatinhar era uma questão neurológica, não física. E que o Antonio só ficaria na posição do gato quando o seu cérebro estivesse pronto, e não por causa da amarração.

Quando duas pessoas preparadas, confiáveis, embasadas por conhecimentos científicos e por anos de experiência, indicam caminhos excludentes, qual seguir? E quando a terceira opinião indica um terceiro caminho?

Onde guardar o medo de tomar a decisão errada? Como evitar o receio de ouvir de um profissional, daqui a alguns anos, que se você tivesse escolhido a outra terapia, o outro método, o outro medicamento, seu filho poderia estar melhor?

Pelo menos no caso do Antonio, esta é uma angústia que se repete em diversas esferas. Por exemplo, a consistência mais adequada da comida: em pedaços, para desenvolver os músculos da face e a mastigação, ou em consistência pastosa, para não correr risco aspirar alimento e ter complicações? O antibiótico que ele toma diariamente: devemos continuar, para mantê-lo longe de internações hospitalares, ou devemos descontinuar e procurar uma solução mais arriscada para as infecções urinárias, como uma cirurgia? A ressonância magnética que ele precisa fazer para sabermos se escuta direito: devemos fazer, e correr todos os riscos cardíacos e respiratórios envolvidos com uma anestesia geral, ou devemos não fazer, e possivelmente prejudicar o desenvolvimento dele por não usar um aparelho de audição?

As dúvidas apenas aumentam com relação ao desenvolvimento. Hoje o Antonio engatinha, mas do jeito dele, diferente das demais crianças. É melhor deixá-lo utilizar sua própria forma, mas conseguir exercer a função? Ou é melhor insistir (sabe-se lá por quanto tempo) que aprenda a forma certa, para que siga para as próximas fases com mais êxito e firmeza? O Antonio não leva nenhum alimento à boca (bolacha, pirulito, doces, nada), porém passa o dia inteiro mordendo brinquedos e os dedos. O quanto podemos insistir com um biscoito (e correr o risco de criar uma aversão) e o quanto devemos deixá-lo livre para explorar apenas o que gosta? E seguimos assim por diante, com as perguntas se multiplicando em progressão geométrica.

O consolo é que, para algumas dessas questões, quando menos se espera a resposta chega. Por muito tempo tive uma dúvida extremamente dolorida: será que meu filho sabe que eu sou o pai dele? As razões para duvidar eram muitas. Ele não estranhava ninguém, mal percebia quando eu saía de casa, não atendia quando eu chamava o seu nome. Até que um dia, sentindo coceiras no rosto por ter adotado um visual Osama Bin Laden, eu decidi tirar a barba, alvo preferido do Antonio, quando ele está no meu colo. Nunca vou me esquecer da confusão nos olhos dele quando tocou pela primeira vez no meu rosto liso. Ele afastou as mãos imediatamente e ficou me examinando, tentando entender o que tinha acontecido. Ele fez mais uma tentativa e novamente retirou as mãozinhas, como se sentisse gastura com a nova textura da minha pele. A voz era a mesma, mas a imagem não era. E naquela noite, ele não se divertiu comigo da mesma forma que nos outros dias. O pai dele tinha barba. Logo, eu podia ser parecido, mas provavelmente não era o pai dele.

Em poucos dias, a barba voltou, assim como as puxadas e unhadas do meu filho. O pai finalmente estava de volta, do jeito que ele reconhece. Como falei, o Antonio está progredindo. Hoje ele vem a mim engatinhando quando eu o chamo. Estica os braços para que eu o pegue no colo. Às vezes toca na minha barba quando estou com ele de madrugada, e tenho certeza que é assim que ele identifica que sou eu, e não outra pessoa. Sei que nada disso parece excepcional para uma criança. Parecem detalhes sem importância. Mas depois de meses (anos, na verdade) esperando por esses sinais, cada gesto é uma emoção inesquecível.

Não tenho a menor ideia se um dia vou ouvi-lo me chamar de pai. Não tenho controle algum do que ele aprende ou deixa de aprender. Não sei o quanto o Antonio compreende do mundo. Mas cada vez que ele passa a fazer algo que tentamos ensiná-lo incontáveis vezes, cada vez que ele dá um retorno aos nossos insistentes estímulos, eu sou tomado por uma satisfação tão grande, que faz todo o esforço valer.

Outro dia um vizinho comentou comigo: “deve ser interessante acompanhar o desenvolvimento dele, né? Porque às vezes o meu filho pode levar umas duas horas para aprender algo, enquanto o seu pode levar muito mais, talvez semanas. Deve ser emocionante ver o Antonio aprendendo as coisas.”

Fiquei algum tempo pensando que minha vida seria bem mais fácil se o Antonio aprendesse tudo mais rápido. Gentil, o meu vizinho quis ressaltar um ponto de vista positivo com relação à deficiência do Antonio. Apesar das dificuldades, é como se eu tivesse o privilégio de assistir a cada instante em câmera lenta. E por um lado, meu vizinho tem razão. Criar o Antonio é ver a mágica acontecer quadro a quadro, com longas pausas entre cada uma delas. Minha única dúvida é se isso é algo bom ou ruim. Não tenho certeza se viver essa experiência me faz mais ou menos feliz do que um pai de uma criança com desenvolvimento regular. Na verdade, cada vez que o Antonio estica os braços para mim, ele me lembra que este tipo de comparação com outras famílias já não faz mais sentido. Ele me ama, mesmo que tenha que esperar minha barba crescer. Eu o amo, mesmo que tenha que esperar para ele aprender. Como bem cantou Renato Russo, temos nosso próprio tempo.



12 comentários:

  1. Lindo! Mais uma vez meus olhos são encobertos por lágrimas. E hoje você me deu mais um ensinamento: nós pais de filhos ditos normais ou especiais aprendemos que, em muitos momentos, o tempo nos dirá o caminho a percorrer. E precisamos conscientizar que os erros são inerentes da condição humana, mas sua luta no acerto tem um valor imensurável. Hoje me senti mais próxima.... educar é uma arte, e muitas vezes os manuais não nos ajudam. Por isso, se sinta livre também para arriscar, com seu lindo amor pelo Antônio.

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  2. Fabinho
    Só tenho a te dizer que Deus só dá crianças especiais a pais muito especiais! Bjs da prima Cassiane

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  3. Que bom que voltou !!!! Beijo para o Antonio!

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  4. Uhullll!!! Retorno!!!! E em grande estilo...curti muito.

    Ele progride sim Fabio; eu, que nao o vejo todos os dias, consigo notar as melhoras que talvez passem batidas por voces. Sempre fico feliz de ve-lo mais menininho e menos bebe a cada encontro!

    Escreva mais, escreva sempre; é uma maravilha começar a semana com boas leituras.

    obs: quero saber quem está ensinando os movimentos de pagem pra ele...

    Beijo, Beta.

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    1. Beta, de um jeito ou de outro pode deixar que ele entra nessa igreja. bj

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  5. Oi Fábio, vim falar da sua xará (pessoa que tem o nome igual ao seu): minha irmã, a Fábia. Ela também é especial, com sua síndrome de Lennox-Gautaut. Tem 18 anos, fala poucas palavras, não acompanhou uma escola regular e não come com talheres. Mas me chama de irmã de vez em quando e aprendeu o “mamãe” e “papai”, além de outras palavrinhas indicativas que saem raramente como "ába" (água), "bãim" (banho)... Sem contar com outros sons que também pedem comida e os dedinhos que sempre apontam pro que querem insistentemente. Ela estuda numa escola especial, na APAE da nossa cidade, onde também recebe acompanhamentos médicos. Damos comida, banho, trocamos fralda, seguramos pra andar... ela depende de quem ama. Isso foi só pra você conhecê-la um pouquinho, queria mesmo era contar uma história que seu texto me lembrou. Quando a Binha era pequena, a gente tinha um velotrol (eu sou só três anos mais velha). Eu pedalava, ela não. Mas a gente não cansava de ensinar e, do jeito dela, ela estava aprendendo. Até que um dia minha mãe (essa história é ela quem conta) chegou no trabalho feliz da vida porque a Binha tinha dado uma pedalada, contou pra todo mundo, porque ela tinha visto um resultado de algo que a filha custou a aprender. Ela teve mais tempo de ver o esforço porque, como seu vizinho notou, o aprender passa devagarzinho, como se fosse pra gente admirar. Uma amiga dela, vendo a alegria da minha mãe comentou que a filha era capaz de fazer as coisas muito mais rápido e aprender mais coisas e ela não vibrava de alegria como a minha mãe, que vibrou por algo tão pequeno. Eu gosto dessa história da pedalada da minha irmã e da deficiência da mãe que não vê. Acho que a Binha ensina isso: que não há futuros quando já sabemos o que vamos fazer. Não conseguimos ver aquilo que é cotidiano, precisamos dar um olhar especial pras coisas, pras nossas ações, pra que elas virem aprendizados. Identifiquei minha família aí no seu texto. Também fazemos escolhas excludentes, talvez não fazemos algo que poderíamos estar fazendo... Mas importa o que fazemos, o que a Fábia faz e o tempo tão carinhoso que ela tem. Na idade dela, não temos muitas coisas pra ensinar: ela se comunica, come, estuda, vive feliz. Nós é que aprendemos a linguagem dela, a entender os olhares, os sons, os meio-sorrisos, as crises, as gargalhadas. Aprendemos a comer do jeito dela, no tempo dela. Particularmente, eu aprendi que ler não é um código único que nosso cérebro decodifica daquele jeito que eu e você aprendemos na escola. A Binha lê até de cabeça pra baixo e vai ver as histórias que ela enxerga nos meus livros são até mais legais que essas que eu aprendi a entender. Me empolguei e escrevi demais. Mas é que ler coisas bonitas dá inspiração e eu me empolgo com a minha irmã, principalmente sabendo que vocês me entendem. Suas histórias são lindas e o Antonio é uma fofura. Prova disso é que eu consegui enxergar o olhar confuso dele nesse texto. Parabéns!

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    1. Beatriz, é uma grande gentileza sua contar a história da sua família aqui. São pessoas como a Binha que nos trazem a tranquilidade de que a vida com o Tom pode ser muito boa, cheia de afeto e realizações, independentemente das limitações da deficiência. Não é tão fácil como a gente (eu, você, minha família, sua família) faz parecer. Mas a vida não precisa ser fácil para ser boa. Obrigado pelo comentário. bj

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