quarta-feira, 11 de julho de 2012

Os mesmos 27%

A Noruega é um país calmo. Nos cinco dias que passei por lá, não vi gente correndo pelas ruas, não vi trânsito engarrafado, não vi ponto de ônibus lotado. A Noruega tem um dos sistemas de organização social mais bem montados que já conheci. É um país pequeno, sim. Porém, se esta fosse a explicação, diversos outros países pequenos também seriam exemplos de qualidade de vida. E é preciso reconhecer: mesmo entre os países desenvolvidos, a Noruega é um caso raro.

Na Noruega, uma criança com deficiência não só tem direito de estudar em uma escola regular como recebe assistência integral de um tutor particular em sala de aula. Se necessário, consegue-se dois tutores particulares. Além disso, em cada comunidade há centros de bem-estar, em que pais de crianças especiais podem deixar seus filhos por algumas horas, para que eles – pais – possam realizar simples tarefas do dia a dia, como ler um pouco, ou ir ao supermercado. No centro de convivência, há uma equipe de pedagogos e terapeutas treinada para entreter a criança, estimulá-la e administrar medicamentos, se for o caso. Os jovens noruegueses com deficiência mental, aos 18 anos, ganham do governo uma casa, perto da residência dos pais, completamente adaptada para as suas necessidades. E contam com uma equipe de cuidadores que se revezam todos os dias para garantir sua segurança e bem-estar. Assim, os pais, que cuidaram daquela pessoa por quase duas décadas, têm uma chance de vivenciar um pouco da vida em seu trilho ordinário, em que filhos nascem, crescem e, quando adultos, saem de casa. Na Noruega, tudo isto é financiado com os mesmos 27% de impostos que se paga no Brasil. Estes serviços – e outros mais tradicionais, como uma boa rede de hospitais públicos, capaz não só de atender à demanda cotidiana, mas também de realizar pesquisas de longo prazo – são direitos garantidos a todo cidadão norueguês, seja ele deficiente ou não. As pessoas não precisam se preocupar: terão seus benefícios honrados sem gastar um centavo extra sequer.

* * *
 
Meu cérebro gosta de coincidências. Ele também adora pesquisas que tentam desvendar porque o cérebro humano gosta das coisas. Tanto que, assim que meus olhos viram um livro chamado You Are Not So Smart (Você Não É Tão Esperto, ainda sem tradução para o Português), meu cérebro ficou berrando “Compra! Compra! Compra!”, já que o autor prometia comprovar teorias curiosíssimas como, por exemplo, a de que a maior parte da nossa memória é ficção, a de que não temos a menor ideia de quando estamos sendo influenciados pelos outros e a de que coincidências são meras obras do acaso, porém nosso cérebro insiste em inventar significados especiais.

Apesar de julgar alguns argumentos do livro frágeis, devo admitir que eu fiquei bastante entretido com o tom de deboche que o autor usa para desmontar crenças que carregamos sem questionamentos há gerações. Porém, não sei exatamente por que acabei interrompendo a leitura. Não levei o livro para a minha viagem de férias, em que visitaria, entre outros países, a Noruega.

Por mais descrente que o autor seja em coincidências, por mais que ele tente comprovar que todo significado particular é pura fabricação da nossa cuca (demasiado mística, esperançosa e romantizada), ele há de concordar que é uma incrível obra do acaso o fato de eu retornar da calma Noruega, desembarcar no caótico Brasil e retomar o livro justo em um capítulo que discorre sobre como o cérebro age no uso dos bens públicos. E sobre qual a razão para alguns sistemas públicos funcionarem e outros quebrarem.

De maneira sucinta, o capítulo explana a lógica de um experimento chamado O Jogo dos Bens Públicos, que funciona assim:

“Um grupo de pessoas se senta em volta de uma mesa, e cada um recebe alguns dólares (ou qualquer outra moeda). O grupo é avisado que cada um pode colocar quanto dinheiro desejar em um pote comunitário. Então, um pesquisador dobra o valor total do pote e todos recebem uma parcela igual de volta.

Se o grupo tem 10 pessoas e cada um recebe $2, e se todos depositam esta quantia no pote comunitário, o total será $20. Então, o pote é dobrado para $40 e dividido entre os 10 participantes. Cada um recebe de volta $4.

O jogo acontece em várias rodadas. E seria natural imaginar que todos colocariam o máximo de dinheiro no pote a cada rodada – mas não é isso que acontece. Geralmente alguém pega a lógica do jogo e percebe que pode depositar muito pouco no pote, ou até mesmo nada, e começar a ganhar mais dinheiro do que todos os outros.

Se todos os participantes, exceto um, depositam $2 no pote, a soma será $18. Então, o pesquisador dobra para $36 e todos recebem de volta $3,60 – inclusive o indivíduo que não colocou um centavo sequer no pote.

Em pesquisas em que este experimento é jogado de forma que todos possam ver quanto os outros estão depositando, o pote tende a crescer por um tempo, mas depois começa a definhar à medida que as pessoas arriscam segurar o próprio dinheiro. O comportamento logo se espalha, porque ninguém quer fazer papel de idiota, e eventualmente a economia para de funcionar. Se os participantes têm a opção de punir os trapaceiros, a fraude cessa e todos voltam a ganhar. Porém, se em vez da possibilidade de punição, os participantes ganham apenas a chance de recompensar os bons jogadores, a economia quebra novamente em poucas rodadas.

O curioso deste jogo é que é completamente ilógico parar de contribuir para o pote apenas porque alguém do grupo está tirando vantagem. Se todos os outros continuarem sendo bons cidadãos no jogo, todos ainda sairão ganhando. Entretanto, o lado emocional do cérebro entra em jogo quando você percebe um impostor. É uma reação nata, que foi muito útil para seus ancestrais. Lá no fundo, você sabe que os trapaceiros merecem ser punidos, porque basta um deles para a economia entrar em colapso. Você prefere perder o jogo inteiro a ajudar alguém que não está ajudando você.” 

Tradução livre de trecho do livro You Are Not So Smart, de David McRaney.

* * *

Ao terminar de ler o capítulo sobre O Jogo dos Bens Públicos, fiquei curioso para saber qual sistema de penalidade fez as coisas darem tão certo na Noruega. Passei um bom tempo também pensando que é exatamente a falta de punição que faz o nosso país degringolar: seja por quem fura a fila do cinema, seja por quem sonega os impostos de uma multinacional.

Desembarquei no Brasil com uma mistura de felicidade pelo clima agradável e pelo maravilhoso som da nossa língua em meus ouvidos, e desgosto pelo caos sem precedentes que encontrei logo no aeroporto, com policiais federais incapazes de realizar a passagem pela alfândega de forma organizada e demonstrando claro descaso com aquela multidão que chegava exausta de um voo de mais de 9 horas.

Quando encontrei meu filho, dei um abraço demorado, relembrando o quão distantes estamos da Noruega, não apenas geograficamente, mas principalmente em maneiras de garantir qualidade de vida para qualquer pessoa, quanto mais para pessoas com necessidades especiais. Voltei das férias com a certeza de que, no dia em que o Antonio nasceu, fui alistado compulsoriamente em uma guerra. Uma guerra que só me deixa duas saídas. Desistir de viver no Brasil. Ou lutar.

Não se preocupe, meu filho. O papai vai lutar.




29 comentários:

  1. Ah! garoto...o amor vale a luta. E fazer a nossa parte, sempre da melhor maneira, por um país digno dos nossos filhos, vale mesmo lutar. Que bom que voltou. Beijos nos 3, Ivana

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  2. Fábio, viajar é muito bom, mas voltar pra nossa terra, nossa gente e falar a nossa língua é melhor ainda e lutar, é sempre a melhor opção em qq situação.

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  3. Puta texto bom! :)

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  4. Fabinho, no final ficou faltando: "Papai vai lutar. E de farda preta."
    Que faca na caveira!!!! ADOREI!
    P.S: Eu tava com saudades dos textos.. Dá próxima vez, deixa Ana escrevendo!!!
    Bjos

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    1. Só não posso fazer o papel do Capitão Fábio, senão o país afunda de vez! Da próxima vez, é a Ana que tira férias. Acho que vou ter que postar 3 vezes por semana só sobre saudade. Até sábado. bj

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  5. Fábio, sempre ficamos admirados quando nos deparamos c/ lugares assim tão desenvolvidos, mas não adianta a gente querer viver uma realidade que não é a nossa, a menos que a pessoa faça a opção de morar num desses países. Tenho certeza que o Antonio sempre vai ter muito orgulho de ter um pai que nunca vai deixar de lutar. Bem vindo de volta. Bjs

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    1. Obrigado, Cléo. Confesso que antes de saber que o Antonio era especial, considerava passar uma temporada fora sim. Hoje praticamente descarto, acho que a convivência com a própria língua e a própria cultura serão melhores para o desenvolvimento dele. Mas que dá vontade de ir para um Canadá da vida, isso dá. Bjão

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  6. Grande observação, Fabinho! De fato, um sistema onde a lógica do Bem Público funcione parece estar atrelado à lógica de penalidades. Mas acredito ainda num outro elemento ainda mais vital (e que não foi medido nos experimentos relatados): educação.

    Temos várias mazelas aqui (quando comparamos com a Noruega, tanto pior), mas a principal, no meu entender é a falência do sistema educacional.

    Parabéns, mais uma vez, por compartilhar essa visão especial.

    Abs!

    André

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    1. Concordo plenamente sobre a questão da educação. Como é um livro americano, onde o sistema educacional tem sim seus problemas, mas pelo menos ainda não é falido, o livro não deve abordar nada do gênero. Mas educação é um tema que certamente aparecerá no blog muito em breve. Preciso apenas formar uma opinião mais consistente, viver algo na pele (talvez quando o Antonio entrar para uma escola), para poder escrever sobre isso.

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  7. Fala, Bonitão!Saudades de você, Fabio! Bacanas os primeiros relatos sobre suas experiências! Que elas possam ter acrescentado muita coisa boa na sua cabeça! Assim como saímos de um bom filme da sala de cinema... eu tenho uma relação bipolar com o Brasil... acho nosso patriotismo barato e descabido devido à gestão pública e, ao mesmo tempo, amo esta cultura e vou fazer, no próximo sábado, minha nova tatuagem, sobre Samba... vamos à Luta! Ab!

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    1. Da Vila, minha relação com o Brasil é paradoxal também: amor e ódio. Mais amor do que ódio. Me cansa um pouco a visão hedonista e egoísta que muitos de nós adotamos frente algumas situações. O conformismo do "isso nunca vai mudar". Mas aos poucos, vamos andando em frente. Cada um, com as suas experiências próprias, agindo de forma correta, acaba fazendo o país melhorar. Abraço

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  8. Lindo texto.. lutar pelo direito viver bem! É isso aí...

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  9. Hermano,

    É sempre difícil incorporar essa coisa de não desistir nunca, mas é o único caminho para nós, que precisamos de cada centavo do nosso salário, todos os meses!

    Pelo menos a sua luta tem o mais belo dos propósitos, que é o amor pelo seu bebê.

    Obs: filme ele brincando com o Bob Esponja para nós??

    Beijos, Beta.

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    1. Beta, tenho muitas filmagens para fazer. Ele anda uma figura. Precisa ver entrando no banho. Vai com um sorriso de orelha a orelha e fica se atirando para baixo do chuveiro. bj

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  10. Fabio, muito bom o texto da "volta" ao Flizam! A Noruega, segundo o índice de Desenvolvimento Humano da ONU, é o melhor país para se viver. E é também o melhor país para uma criança. A reputação da Noruega como uma sociedade "amiga das crianças" é parcialmente fundada na sucessão de iniciativas governamentais para aperfeiçoar os direitos dos pais e nas circunstâncias econômicas. A licença maternidade é de 42 semanas com salário integral, e o pai tem quatro semanas de licença. É, realmente, outro país, além de outro departamento.
    Mas o Antonio tem um pai lutador, incansável, que terá ajuda de todos nós para a gente conseguir, como você diz, dar um próximo passo para melhorar as condições de crianças especiais. Reforço o pedido da Roberta para os filmes sobre o Antonio! Beijos e saudades, Mimi

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    1. Mimi, é verdade a questão da licença extensa. A Kathrine só pode me encontrar em Oslo porque o marido estava em licença paternidade, cuidando da filha pequena para ela. Vou providenciar os vídeos. Matar a saudade do Tom, retomar o blog e a preparar tudo para as obras da casa nova estão tomando o tempo livre. Mas farei vídeos. bj

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  11. Ah, Fábio,

    É dureza as faltas: falta educação, falta correção, falta punição, falta organização, falta intuição, falta libertação, falta timão, falta tesao, dentre outras.

    Há também falta de ideais. Aqueles que se realizam na vida, muitas vezes, param e vivem suas boas vidas sem se importar de transmitir aos menos favorecidos seus conhecimentos e suas experiências.

    Sinto um certo desencanto.

    Mas prossigo. Na luta.

    Que bom que voltaste, e bem ! As boas reflexões podem e devem fomentar boas ideias. Boas ações. Individuais ou cidadãs. Sempre boas, empreendedoras, colaboradoras, agregadoras.

    Beijos

    Mãe

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    1. Mãe, boas ideias até acredito que existam muitas. Acho que nós às vezes temos é um certo desânimo de colocá-las em prática, pelo cenário em que vivemos. Espero ter coragem e energia para fazer algo de útil não só pelo Antonio, mas algo de útil de uma maneira geral. bj

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  12. Fábio,

    Dá uma olhada www.mises.org.br, boas ideias e um pessoal que também luta.

    Abraço;

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  13. Atrasadona, mas dá um desconto vai, eu tb estava viajando! XD

    Pois bem isso aqui: "pelo maravilhoso som da nossa língua em meus ouvidos,"... Cara a cada vez que eu viajo ao exterior eu amo mais a nossa língua.. Com menos de 1 semana lá fora eu já sinto faniquito querendo ouvir alguém falar o português do Brasil! XD... Explico isso para quem nunca viajou ao exterior e eles me olham com cara de "Tá doida? Viajando e pensando em português?" kkkk..

    Mas lendo sua postagem sobre a Noruega me deu uma coisa de "PQP que sonho, que coisa boa deve ser viver num país onde essas garantias são reais e que merda que o Brasil não é assim"... Dá uma certa tristeza né? Ver o potencial nosso e então ver isso morrer na praia..

    E ao contrário do autor do livro, eu acredito em coincidências! XD

    E mais uma vez Fábio, volto a dizer, o Antonio tem sorte em tê-lo como pai. Ir a luta por um filho é prova de amor sem igual...

    Bjos e obrigada de novo pelo texto lindo..

    Prometo ir me atualizando!

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    1. Polly, andou por onde?! Não vi fotos ainda. rs. Que bom que está de volta. Tb sou defensor e admirador da nossa língua. Poucos idiomas soam tão bem quanto o nosso português. bj

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  14. Pela velha e linda e poluída São Paulo.. Eu amo aquela cidade mesmo com toda aquela loucura!

    E também por Caldas Novas.. Filhos não precisam ter férias só de museu, teatro e trânsito louco! XD

    As fotos de Sampa estão no face, e as de Caldas ainda não postei..

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  15. Prezado Fabio. Que lindo blog e que sábias palavras.Estamos no mesmo barco só que optei por sair do Brasil por ter um filho com dupla nacionalidade. Mas não é fácil...descobrir que em meu país não há especialistas na síndrome do meu filho - IDIC 15 - e que além de lidar com o luto do filho idealizado tenho que lidar com escolas, sistema de saúde, desqualificação de terapeutas, etc. Não dá...entre viver num país que me oferece tudo de graça - França- e o meu em que até para os "normais" é difícil, fico com a segunda opção...

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